POR BOB FERNANDES
Citado nos últimos dias, nas redes sociais, como
apoiador da candidatura Marina Silva (PSB), o escritor Milton Hatoum, em
entrevista ao Terra Magazine, diz por que desistiu dessa
“propensão”:
- O motivo principal foi a mudança, para mim
inaceitável, de alguns pontos do programa da candidata do PSB. Marina
Silva alegou “falha processual na editoração do texto”. Essa justificativa me
pareceu totalmente infundada. Na verdade, foi uma renúncia ao compromisso de
respeitar, sem hesitação, o Estado secular.
Opina ainda Hatoum:
- Claro que houve pressão de líderes religiosos,
neopentecostais. E quando grupos religiosos desafiam princípios éticos e
republicanos, algo vai mal.
Abaixo, a íntegra da entrevista.
Nos últimos dias, nas redes sociais, vinha sendo
citado seu apoio à candidatura de Marina Silva, do PSB. Neste domingo, em
pequena nota, você desiste do que esclareceu ser sua “propensão” a votar em
Marina. Qual o motivo dessa mudança de posição?
Milton Hatoum: O motivo principal
foi a mudança, para mim inaceitável, de alguns pontos do programa da candidata
do PSB. Marina Silva alegou “falha processual na editoração do texto”.
Essa justificativa me pareceu totalmente infundada. Na verdade, foi uma
renúncia ao compromisso de respeitar, sem hesitação, o Estado secular. Esse
compromisso constava no programa original. Claro que houve pressão de líderes
religiosos, neopentecostais. E quando grupos religiosos desafiam princípios
éticos e republicanos, algo vai mal. Todos os dias cometem-se crimes e
agressões contra homossexuais. A nova “editoração do texto” ignorou o
compromisso de articular no Legislativo a votação do projeto 122/06 e também
suprimiu o combate ao bullying no PNE (Plano Nacional de Educação).
O que mais incomodou nessa questão? Além desse
aspecto que envolve o Estado laico – a possibilidade de mistura de assuntos de
Estado com religião – houve uma reflexão que chegue a outros temas?
Há pontos muito positivos. Por exemplo: a necessidade
de reformas política e tributária. Mas o programa econômico me pareceu vago,
acho que deveria ser mais detalhado. No PSB, considero Luisa Erundina uma
mulher admirável, extremamente ética, o que significa dizer: extremamente
responsável. Também admiro Marina e sua trajetória de vida. Mas se ela
for eleita, quem serão seus aliados? As bancadas religiosas? Os
fisiológicos do PMDB? Isso também precisa ser esclarecido.
Do ponto de vista pessoal, qual seu aprendizado em
relação a assuntos de fé? O que e com quem se deu sua formação ou não nessas
questões?
Não tive uma formação propriamente religiosa. Fui
batizado (católico) aos 11 anos, mas o sacramento do batismo não é eterno,
depende da formação educacional, da experiência de vida e da convicção de cada
pessoa. Minha mãe era católica praticante, meu pai era muçulmano não
praticante, nem havia mesquita em Manaus. Durante a infância nessa cidade,
convivi com crianças de famílias católicas e judias, cujos pais eram amigos dos
meus. Algo desse convívio foi abordado nos meus romances. Na minha casa, a
religião não era uma questão, muito menos um assunto crucial. E eu mesmo nunca
fui constrangido a seguir essa ou aquela orientação religiosa. Estudei em
escolas públicas, portanto laicas. Respeito todas as religiões, pois fazem
parte da cultura de uma sociedade. Mas discordo radicalmente dos crentes que,
possuídos por um proselitismo irracional, histérico e messiânico tentam impor
dogmas religiosos a um Estado laico. Pelo que já li e soube, importantes líderes
políticos em Salvador pensaram em retirar símbolos do candomblé, expostos no
Dique do Tororó, e me parece que ainda insistem nisso por lá. Nas últimas
semanas e meses, templos de religiões de origem africana, como o candomblé, têm
sido atacados no Rio, Salvador e em outras cidades. Isso é aceitável numa
democracia? Muitos fiéis assimilam ao pé da letra um texto sagrado. Essa crença
na palavra divina é compreensível na prática religiosa. Mas quando fiéis ou
líderes religiosos tentam impor sua interpretação do texto sagrado ao mundo
terreno, pode ser muito perigoso para o conjunto da sociedade e até para o
funcionamento do Estado. O diabo, os pecados e milagres deveriam ficar
restritos ao diálogo íntimo dos crentes com o poder divino. Como escreveu Guimarães
Rosa, na página final do Grande sertão: veredas, em que o narrador Riobaldo diz
a alguém que ouviu sua história. “Amável o senhor me ouviu, minha ideia
confirmou: que o Diabo não existe… Existe é o homem humano. Travessia.” conteúdo: Terra Magazine
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