“No meio das tabas de amenos verdores, / cercados de troncos – cobertos de flores”… Foi nesta tribo de palavras mágicas e rituais encantatórios que me tornei prisioneiro da lírica maranhense. Tinha eu, então, dez anos, e, a partir desta experiência com o texto de Gonçalves Dias, nunca mais me exilei da poesia.
Como o destino não para de fazer rimas, estrofes adiante, fui apresentado às “muitas vozes” do poeta da Rua dos Prazeres: o sanluisense Ferreira Gullar, de quem me tornei amigo e curador. Aliás, foi através de sua obra que caminhei por São Luís, muito antes de pisar na terra do bumba meu boi.
Se eu disser que meus encontros com a literatura maranhense terminaram por aí, seria o mesmo que afirmar que me encontrei com o boizinho encantado na noite de São João. Minhas leituras temperadas com cuxá e regadas a guaraná Jesus levaram-me a outros dois poetas: Salgado Maranhão e Félix Alberto.
Em Salgado Maranhão, descubro a cor da palavra, a salinidade de sua inquietação poética na busca de raros neologismos e uma temática que oscila entre a infância dos afetos e as garras de um mundo que nos arranha e devora:
As distâncias que se deitam
sob os meus pés, espicharam-me
os olhos ao leito das almas
tristes:
essas tristes léguas
que se me espalham
às metrópoles rasuradas.
Eu que sou do barro
dos oleiros, do sol
que acorda os mirantes;
eu que sou da várzea —
irmão dos rios descalços
e das pedras mudas —,
não tenho para quem
chorar esta litania
de espectros,
estes grafites de sangue.
Não é a sucursal da dor
que nos acende o sol
e a sede de ágora,
é o esplendor
do ínfimo.
Pode ser que agarremos
o real pelas vísceras,
que se nos afoga
à superfície;
pode ser que elevemos
o caos aos baixios,
que nos rende ao pântano
sem planície.
Ainda assim,
quebra-se a noz desse jogo…
e o que não serve ao pasto,
serve ao fogo.
(NOZ, Salgado Maranhão em “A sagração dos lobos”)
Em Félix Alberto, desgarrado de estilo – com seus versos livres – plana sobre o poema com a leveza de quem sabe se despojar dos exageros, para pousar serenamente seus significantes e significados. A musicalidade rege amores e abismos, dependendo apenas da intenção de sua batuta:
ele vê o que não quer
o que não ouve
e sente
o mundo ao redor da melancolia
a íris de jezabel
o santo graal dos loucos
com a palma da mão
a ponta do pé
o ouvido esquerdo
há um olho em cada cova
do corpo
plasmando paisagens ao acaso
os arbustos da pérsia que decoram calçadas
o gemido da virgem
além das brumas do leito
a lua que luzia faíscas de neon
nada passa despercebido
ele enxerga o cheiro dos lírios
esquecidos na janela da alfaiataria
os muros além dos muros
que jamais foram erguidos no campo
e o fair play do fim do mundo
ele não é deus o homem
na urdidura do poema
(ÂNSIA DE UM HOMEM COMUM, de Félix Alberto Lima em “Filarmônica para fones de ouvido”)
Ambos são escritores do seu tempo e do tempo que inventam através de um relógio de palavras que registra os segundos, os minutos e as horas da imaginação.
Por falar em tempo, um sabiá do alto de uma palmeira me avisa que é hora de largar a prosa e deixar cantar a poesia. Ouçam, portanto, os rugidos poéticos de Salgado Maranhão e a filarmônica de versos – para além dos fones de ouvido – de Félix Alberto.
*Carlos Dimuro é poeta, curador, diretor cultural e presidente de honra da ABA – Museu Nacional de Belas Artes.
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