por Tainah Negreiros*
Pinamar é
o nome da cidade litorânea argentina em que se passa o filme de Federico
Godfrid. É aonde os irmãos Pablo e Miguel devem retornar para assinar os
documentos de venda da casa da mãe, recém-falecida em um acidente. Desde a
primeira sequência, enquanto vemos os dois no carro a caminho da cidade,
assinala-se um descompasso. Pablo dirige concentrado, sério, com um olhar
interiorizado, enquanto Miguel emite com a boca
sons aparentemente sem sentido, que logo se revelam um beatbox. Pablo sustenta
o silêncio, Miguel não. Miguel deseja ficar mais uns dias em Pinamar, Pablo
não. Fisicamente os dois também não se parecem – algo que pode sugerir uma
escolha do cineasta de forma a conceber uma camada a mais de distinção. A
diferença conduz o filme e orienta as experiências dos dois com a cidade, com a
casa de sua mãe e com as amigas e amigos reencontrados.
Em foco
estão Pablo e seu silencioso trabalho de memória. Os gestos de uma mulher
pescadora, fotografias encontradas em casa, a voz de sua mãe saída de um
gravador ou uma roupa dela pendurada são todos elementos que o conectam com o
passado e com a perda recente. Enquanto vivencia esse tipo de experiência, a
venda da casa se aproxima.
Tudo
chama a atenção do rapaz. A distração em Pinamar lhe parece impossível. O tempo
está frio, a cidade está vazia, as grandes janelas da casa da mãe se abrem para
a paisagem litorânea de baixa temporada. Miguel dá um jeito para que os dois
fiquem mais tempo por ali.
A
presença de Laura, amiga de infância, sublinha as diferenças entre os irmãos na
mesma medida em que aponta para um aspecto comum deles. Assim como a perda, a
partir dali a paixão também os une.
A jovem
de cabelo azul desbotado se mostra um respiro distraído nesses dias de retorno,
ao mesmo tempo que motiva uma tensão e uma competição entre os dois. Em muitos
momentos, o extrovertido Miguel (atuação com despojamento na medida exata para
encobrir a dor) se coloca como a manifestação do que Pablo prefere silenciar. A
essa altura do filme, alguns desencontros parecem complementares, mesmo que
muitas vezes encaminhem para o embate entre os irmãos.
O filme se
constitui desse olhar sobre o luto dos dois, de modo a investigar com
proximidade as duas medidas dessa desorientação, ainda que tenha o olhar de
Pablo como guia. Em Pinamar, em meio à dor da perda, é possível nascer uma
paixão e também um sentimento de permanência em relação àquele lugar e com as
memórias que ele suscita. Com Laura, Pinamar também deixa de ser um chamado
para o passado e ganha ares de presente, desse agora atrapalhado e errante dos
irmãos enquanto decidem ou não sobre a venda da casa e desse agora do afeto
nascente por ela.
À medida
que a assinatura do documento se aproxima, a tensão entre Pablo e Miguel,
acentuada pela comoção trazida por Laura, se intensifica. O trio se distrai em
passatempos juvenis, cor rendo pela floresta ou deitados no meio do mato,
enquanto conversam livremente sobre a vida.
Momentos como esses realçam a
maneira como a relação dos dois irmãos ali está constituída de pequenos ou
grandes gestos agressivos, em uma espécie de reação ao não dito e não
demonstrado sobre a perda que vivenciam e que os levou até ali. Pablo e Miguel
se alfinetam, se estapeiam, discordam, se atacam. Um aspecto bastante masculino
é revelado através desta película. Muitas vezes os homens brigam quando na
verdade desejam chorar.
HISTÓRIAS
EXTRAORDINÁRIAS
60
* Tainah Negreiros é historiadora graduada pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Estudou mestrado em Meios e Processos Audiovisuais
na Universidade de São Paulo (USP) e é doutoranda no mesmo programa e
instituição, com pesquisa sobre a relação entre memória e história na obra de Agnès Varda. A
pesquisa voltada para esta cineasta tem contribuído para um estudo mais amplo
de obras cinematográficas de teor autobiográfico e autorretratístico e também
para uma reflexão sobre o cinema feito por mulheres
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