sábado, 25 de novembro de 2017

A cidade irmana

por Tainah Negreiros*  

Pinamar é o nome da cidade litorânea argentina em que se passa o filme de Federico Godfrid. É aonde os irmãos Pablo e Miguel devem retornar para assinar os documentos de venda da casa da mãe, recém-falecida em um acidente. Desde a primeira sequência, enquanto vemos os dois no carro a caminho da cidade, assinala-se um descompasso. Pablo dirige concentrado, sério, com um olhar interiorizado, enquanto Miguel emite com a boca sons aparentemente sem sentido, que logo se revelam um beatbox. Pablo sustenta o silêncio, Miguel não. Miguel deseja ficar mais uns dias em Pinamar, Pablo não. Fisicamente os dois também não se parecem – algo que pode sugerir uma escolha do cineasta de forma a conceber uma camada a mais de distinção. A diferença conduz o filme e orienta as experiências dos dois com a cidade, com a casa de sua mãe e com as amigas e amigos reencontrados.

Em foco estão Pablo e seu silencioso trabalho de memória. Os gestos de uma mulher pescadora, fotografias encontradas em casa, a voz de sua mãe saída de um gravador ou uma roupa dela pendurada são todos elementos que o conectam com o passado e com a perda recente. Enquanto vivencia esse tipo de experiência, a venda da casa se aproxima.
Tudo chama a atenção do rapaz. A distração em Pinamar lhe parece impossível. O tempo está frio, a cidade está vazia, as grandes janelas da casa da mãe se abrem para a paisagem litorânea de baixa temporada. Miguel dá um jeito para que os dois fiquem mais tempo por ali.

A presença de Laura, amiga de infância, sublinha as diferenças entre os irmãos na mesma medida em que aponta para um aspecto comum deles. Assim como a perda, a partir dali a paixão também os une.

A jovem de cabelo azul desbotado se mostra um respiro distraído nesses dias de retorno, ao mesmo tempo que motiva uma tensão e uma competição entre os dois. Em muitos momentos, o extrovertido Miguel (atuação com despojamento na medida exata para encobrir a dor) se coloca como a manifestação do que Pablo prefere silenciar. A essa altura do filme, alguns desencontros parecem complementares, mesmo que muitas vezes encaminhem para o embate entre os irmãos.

O filme se constitui desse olhar sobre o luto dos dois, de modo a investigar com proximidade as duas medidas dessa desorientação, ainda que tenha o olhar de Pablo como guia. Em Pinamar, em meio à dor da perda, é possível nascer uma paixão e também um sentimento de permanência em relação àquele lugar e com as memórias que ele suscita. Com Laura, Pinamar também deixa de ser um chamado para o passado e ganha ares de presente, desse agora atrapalhado e errante dos irmãos enquanto decidem ou não sobre a venda da casa e desse agora do afeto nascente por ela.

À medida que a assinatura do documento se aproxima, a tensão entre Pablo e Miguel, acentuada pela comoção trazida por Laura, se intensifica. O trio se distrai em passatempos juvenis, cor rendo pela floresta ou deitados no meio do mato, enquanto conversam livremente sobre a vida. 

Momentos como esses realçam a maneira como a relação dos dois irmãos ali está constituída de pequenos ou grandes gestos agressivos, em uma espécie de reação ao não dito e não demonstrado sobre a perda que vivenciam e que os levou até ali. Pablo e Miguel se alfinetam, se estapeiam, discordam, se atacam. Um aspecto bastante masculino é revelado através desta película. Muitas vezes os homens brigam quando na verdade desejam chorar.

HISTÓRIAS EXTRAORDINÁRIAS
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* Tainah Negreiros é historiadora graduada pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Estudou mestrado em Meios e Processos Audiovisuais na Universidade de São Paulo (USP) e é doutoranda no mesmo programa e instituição, com pesquisa sobre a relação entre memória e história na obra de Agnès Varda. A pesquisa voltada para esta cineasta tem contribuído para um estudo mais amplo de obras cinematográficas de teor autobiográfico e autorretratístico e também para uma reflexão sobre o cinema feito por mulheres

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