segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

A perigosa sedução das tecnologias


O capitalismo global resistirá aos choques sociais futuros resultantes da automação radical? A manipulação genética deve ter limites? Enfim, a quem cabe controlar a técnica?

As características essenciais do capitalismo sempre foram flexibilidade ilimitada, capacidade de mudança e profunda adaptação. Foi o que ocorreu no final da década de 60, quando começou a se evidenciar uma excessiva acumulação do capital. Os processos fordistas, que fizeram a revolução industrial, haviam reduzido fortemente os custos pela produção em série e em grande escala. Com o final da Segunda Guerra, esse modelo utilizado pelas grandes corporações norte-americanas espalhou-se pelo mundo inteiro, convertendo-se em novo paradigma tecnológico. A consequente expansão da acumulação levou a uma produção superior à demanda dos mercados.

Por outro lado, as reconstruções japonesa e europeia e a forte organização da classe trabalhadora em todo o mundo acabaram acarretando certa descapitalização das corporações.

Após a crise do petróleo, a retomada do ciclo de acumulação passou a exigir saltos tecnológicos radicais, aumento de eficiência e, especialmente, barateamento das matérias-primas e da força de trabalho. A redução dos custos salariais, fundamental para um novo equilíbrio da equação do capital, acabou sendo obtida por meio da fragmentação das cadeias produtivas, progressivamente viabilizada pelos avanços da tecnologia da informação.

Uma nova distribuição espacial da produção possibilitou ao capital incorporar as reservas de mão-de-obra barata dispersas pelos países da periferia, ao mesmo tempo em que se beneficiava de condições flexíveis desses países quanto à poluição, ao manejo de substâncias tóxicas e à evasão fiscal.

O desenvolvimento vertiginoso dos softwares, a difusão maciça da tecnologia de informática, o computador pessoal e os programas empacotados acabaram se convertendo em instrumentos decisivos na determinação de como se organiza e comanda a produção global. Esse poder, derivado da nova liderança tecnológica, consolidou a hegemonia econômica norte-americana nessa nova etapa do capitalismo. Finalmente, a conexão por redes globais e a liderança na Internet constituíram-se no elo final desse novo paradigma.

A quantidade e a qualidade das ideias que circulam pela Internet capturam instantaneamente o amplo espectro do estado da arte nos diferentes campos e viabiliza a apropriação dos conhecimentos globais.

As novas tecnologias geram produtos radicalmente novos. Ondas de entusiasmo, apoiadas e lançadas por todos os meios de comunicação, propagam-se em tempo real. O telefone móvel e a Internet, símbolos da interconectividade, passam a ser condição de felicidade. O homem volta a sentir-se rei exibindo seu controle sobre a natureza e a sua intimidade com a mercadoria. Essa relação atinge momentos de excitação fervorosa, de transe religioso e submissão, como no observar encantado das propriedades mágicas de um celular.

Tecnologia da informação e automação estão hoje presentes em todos os lugares. Compõem as cenas da vida cotidiana, instaladas em nossa intimidade. São filhas do desejo, muito mais que um simples instrumento dele. Tornaram-se aliadas ambíguas e desconcertantes, exceto para quem delas tira seus objetivos de lucro e domínio.

As novas técnicas operam com enorme autonomia, trazem importantes vantagens, mas podem facilmente se perverter, tornando-se nefastas e agredindo o próprio homem. Nossa sociedade foi induzida a ser permissiva para que a técnica se imponha como dotada de um poder próprio, difuso, transnacional, controlado -para o bem e para o mal- pelas grandes empresas mundiais que a construíram e a exploram.

O que está em causa é menos a irresponsabilidade de alguns cientistas que não hesitariam em "passar por cima de sua ignorância", negligenciando a imprevisibilidade das consequências e seus efeitos irreversíveis, e mais o poder do sistema tecno-científico sobre uma economia entregue a seu dinamismo e obcecada por seus avanços.

É o caso da terapia genética e dos alimentos transgênicos. Ao longo deste século, o homem conquistou o que jamais pôde pretender: com a entrada na era nuclear, o poder de destruir o mundo; com o acesso à manipulação do DNA, o poder de transformar sua raça.

Parte essencial de um sistema, as tecnologias adquiriram enorme autonomia, tendendo a nos fazer renunciar ao exercício da liberdade de decisão. No entanto, tecnologia é uma produção do livre arbítrio do homem e de sua cultura e deve ser referida a seus valores e éticas. O vetor tecnológico pode ter o rumo que a sociedade humana desejar, se ela não renunciar a sua obrigação de organizar-se em função dos interesses da maioria de seus cidadãos.

Entre outros assuntos vitais ligados à evolução da técnica, deve caber à sociedade -de maneira democrática e informada por uma ética própria-, e não aos gestores das grandes corporações, definir o grau de automação desejável para que não se destrua o mercado de trabalho de seus cidadãos; ou o nível de manipulação genética seguro para os alimentos que consumirão.

Antes que os danos sejam irreversíveis, é preciso garantir à sociedade civil mecanismos para o controle do seu futuro.

Gilberto Dupas, 57, economista era coordenador da Área de Assuntos Internacionais do Instituto de Estudos Avançados da USP (Universidade de São Paulo) e autor, entre outros livros, de "Economia Global e Exclusão Social" (Paz e Terra).

O blog Dom Severino, transcreveu este texto de Gilberto Dupas, publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo na sua versão impressa no ano de 2000, por considerá-lo de uma atualidade impressionante. Impressionante é o termo que melhor define este texto.

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