
| Sou filho da cultura de massas e digo isso até com certo carinho. Um rádio grandão Siemens foi minha primeira babá e companhia de boa parte das horas livres, que eram quase todas, na Grajaú da segunda metade dos anos 60 até meados dos 70 do finado século XX. A ligação radiofônica se manteve por pelo menos 10 anos, quando o velho amigo foi aposentado compulsoriamente pela chegada da TV àqueles confins. Primeiro, com o que o jornalista Zé Raimundo chamaria de 'vt sonoro', que trazia a programação atrasada em vários dias. Depois, com a grade atualizada da extinta TV Tupi. Mas aí já era tempo de embarcar no ônibus da Transbasiliana rumo à capital e a novos canais de TV. Mas isso já é outra história e um dia eu conto. O que interessa aqui é que, especialmente em relação à música, meu gosto se formou em parte via rádio. Outra parcela de informação musical vinha dos Lps, próprios ou intercambiados com um vizinho cujo pai dispunha de uma modesta porém decente coleção de discos de Luiz Gonzaga. Ouvíamos também coletâneas de MPB que traziam gente como João Bosco, Chico Buarque, Jorge (ainda) Ben, Gilberto Gil e Caetano Veloso. Uma vez meu pai chegou da capital com um compacto (era um disquinho com uma música de cada lado) de Geraldo Vandré cantando 'Pra não Dizer que não falei das flores', e explicou que o disco estava proibido pelo governo. Crianças que entendiam vagamente o que acontecia (era governo Médici), ouvíamos o disquinho com ares de quem afronta o poder. Outra grata lembrança são os dois discos de Moreira da Silva, um de meu pai e outro do pai do vizinho, que curtíamos deliciados, porque parecia com as histórias em quadrinhos que líamos aos montes. Graças a eles sou capaz de soltar a voz até hoje em cima de músicas inteiras do Kid Morengueira. Com direito aos breques. Mas, se não sou filho ingrato desse universo, também não me limitei a ele. Cresci transitando naturalmente entre a música popular de vários matizes e o que me caía nas mãos para ler. Da a coleção de westerns de bolso do meu tio Pedro Paulo até a célebre coleção de Jorge Amado de capa dura vermelha que todo mundo tinha mas nem todo mundo lia. Aos 12 anos, maravilha das maravilhas, descolei um emprego como bibliotecário do colégio onde estudava. Os livros eram na maioria antigos, comprados por padres capuchinhos, os antigos diretores da escola. Mas, enfim, eram livros. E muitos. Monteiro Lobato, enciclopédias ilustradas, livros de história universal e até de latim. Vivi nesse paraíso borgiano por dois anos e um dia falo mais dele. E assim fui fazendo minhas escolhas aos poucos, guiado mais pela intuição do que por critérios estéticos. Mas, limitadas, ou não, o fato é que tive opções. Na adolescência, ouvia muito besteirol e dancei ao som de Tina Charles e Bee Gees. Mas chegava em casa e ia ler Graciliano Ramos. Mas hoje, que alternativa pode existir para um garoto de 11, 12 anos submetido ao massacre cultural da mídia, que soterra qualquer sensibilidade sob toneladas de lixo cultural? Será que dá pra ruminar tudo isso e regurgitar alguma coisa que preste? Nem por milagre de João Paulo II, o santo midiático. Para seguir a velha lição do movimento antropofágico, repetida depois pelos tropicalistas, é preciso acrescentar nutrientes ao caldo cultural da cultura de massa. E eles não estão muito longe. Basta olhar para a cena alternativa que fervilha na periferia de toda grande cidade e de onde, depois de muita ralação, alguém escapa para o mainstream, a exemplo de Otto, Chico César e Zeca Baleiro. Mas mesmo assim, continuam praticamente ignorados pelas rádios, que preferem Wanessa Camargo e uma legião de descerebrados. E assim seguimos, caminhando e cantando alegremente para a inanição cultural. Fernando Abreu nasceu em São Luís do Maranhão e viveu na cidade de Grajaú até os 13 anos. É poeta e tem dois livros publicados: Relatos do Escambau (Exodus,1998) e O Umbigo do Mudo (Clara Editora, 2003). Jornalista formado pela UFMA, atua na área de assessoria de imprensa, como servidor público (Tribunal de Contas do Estado) e integrante da equipe de jornalistas da Clara Comunicação. Por vários anos, trabalhou como repórter e editor de cultura. Editou com o grupo Akademia dos Párias, a revistas de poemas Uns & Outros.Tem parcerias com Chico César, Chico Nô, Zeca Baleiro e Gérson da Conceição. |
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