por Fernando Abreu
Nunca me incluí entre os saudosistas, mas começo a rever minha auto-imagem. Pelo menos no que se refere à cena musical dominante da cidade onde vivo, estou virando não apenas um saudosista, mas também um incorrigível reacionário. É tão grave que digo isso e já sinto saudades do tempo em que “ansiava o futuro”, como diz o poema de Maiakóvski musicado por Caetano.
Não disse? Não consegui sequer terminar um parágrafo do texto sem me referir a velharias elitistas do século passado. O lance agora é outro, é baile funk e banda de forró. De preferência, no volume mais alto possível e se esgoelando para gritar mais alto que o, digamos, cantor.
Alguns podem argumentar que se trata apenas de mais um modismo, que daqui a pouco ninguém saberá mais quem é Tati Quebra Barraco ou os não-sei-o-quê-do-caralho-de-asa-do-forró. Pura ingenuidade. O estrago é irreversível. Tenho a impressão de que nossa velha ilha nunca mais será a mesma.
Senão vejamos. Embora sejam, de um lado, produtos industriais para consumo imediato, essa produção é também a pura expressão do politicamente correto em termos musicais, segundo já pude ler e ouvir. Quer dizer, legítima música do povo para o povo. Daí porque constato que o lance vai mais além dos modismos que nos acostumamos a ver ir e vir desde que o mundo é mundo.
Não. O breganejo, o funk barracudo e os sacolejantes forrozeiros tem o aval, envergonhado ou não, consciente ou não, dos defensores de um certo multiculturalismo cego que tem suas bases em um franco sentimento de culpa ou ressentimento social. O resto é ignorância e boçalidade mesmo.
O velho Harold Bloom já falava disso em termos literários, acusando o que chama de “a escola do ressentimento” norte-americana de entronizar autores menos por seus méritos literários do que por sua origem social, gênero ou condição. Por exemplo, Mr. Rollins é filiado à estética gay (a cacofonia aqui é ato falho), por isso merece as honras da academia. Ms. Sicrano defende os direitos das minorias canibais da Ilha de Bornéo, logo sua obra é genial.
Certamente a onda do politicamente correto já atingiu também o panorama literário brasileiro, não sei se com a mesma virulência que nos Estados Unidos de Bloom. Mas, talvez, pela força e expressão popular que sempre teve, a música popular vem servindo de terreno fértil para que essa praga se desenvolva.
O triunfo da breguice a que estou assistindo não é privilégio de minha pobre cidade (do qual abriria mão sem constrangimento), mas é algo que atinge um país com a força de um verdadeiro Katrina, ajudado pelo sopro de muito oportunista de pulmão forte inflando o balão da mídia.
Apesar de saudosista, conservador, elitista e reacionário, não sou contra o funk (às vezes dá até pra rir), o breganejo, as mega bandas de forró ou qualquer outro tipo de imbecilidade musical, acho que têm o direito constitucional de existir. Coisas da vida.
Decididamente não entraria em casa com um disco desses para mostrar a mim mesmo ou a quem quer que seja o quanto sou culturalmente tolerante. Já me bastam os carros que estacionam em minha porta e alguns vizinhos cuja capacidade auditiva já se encontra seriamente comprometida, a julgar pelo volume em que precisam rodar seus CDs de forró.
A propósito, no final de ano, aproveitando a tradicional liquidação das Americanas e presenteei com uma dúzia de CDs, entre eles vários quatro “das antigas” de Caetano Veloso e três de Chico Buarque, dois execráveis representantes das elites culturais brasileiras. No pacote veio também o primoroso “Dwitza”, de Ed Motta e até “Bugalu”, do Lulu Santos. Mas quem se importa? (Clara Comunicaçã)
Fernando Abreu - é jornalista, compositor, poeta e maranhense. Já fez várias músicas cantadas por Zeca Baleiro. Entre elas, a música O Gurú da Galera.
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