quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

O encanto de Carlos Dimuro pela poesia e a lírica maranhense

 

“No meio das tabas de amenos verdores, / cercados de troncos – cobertos de flores”… Foi nesta tribo de palavras mágicas e rituais encantatórios que me tornei prisioneiro da lírica maranhense. Tinha eu, então, dez anos, e, a partir desta experiência com o texto de Gonçalves Dias, nunca mais me exilei da poesia.

Como o destino não para de fazer rimas, estrofes adiante, fui apresentado às “muitas vozes” do poeta da Rua dos Prazeres: o sanluisense Ferreira Gullar, de quem me tornei amigo e curador. Aliás, foi através de sua obra que caminhei por São Luís, muito antes de pisar na terra do bumba meu boi.

Se eu disser que meus encontros com a literatura maranhense terminaram por aí, seria o mesmo que afirmar que me encontrei com o boizinho encantado na noite de São João. Minhas leituras temperadas com cuxá e regadas a guaraná Jesus levaram-me a outros dois poetas: Salgado Maranhão e Félix Alberto.

Em Salgado Maranhão, descubro a cor da palavra, a salinidade de sua inquietação poética na busca de raros neologismos e uma temática que oscila entre a infância dos afetos e as garras de um mundo que nos arranha e devora:

As distâncias que se deitam

sob os meus pés, espicharam-me

os olhos ao leito das almas

tristes:

essas tristes léguas

que se me espalham

às metrópoles rasuradas.

Eu que sou do barro

dos oleiros, do sol

que acorda os mirantes;

eu que sou da várzea —

irmão dos rios descalços

e das pedras mudas —,

não tenho para quem

chorar esta litania

de espectros,

estes grafites de sangue.

Não é a sucursal da dor

que nos acende o sol

e a sede de ágora,

é o esplendor

do ínfimo.

Pode ser que agarremos

o real pelas vísceras,

que se nos afoga

à superfície;

pode ser que elevemos

o caos aos baixios,

que nos rende ao pântano

sem planície.

Ainda assim,

quebra-se a noz desse jogo…

e o que não serve ao pasto,

serve ao fogo.

(NOZ, Salgado Maranhão em “A sagração dos lobos”)

Em Félix Alberto, desgarrado de estilo – com seus versos livres – plana sobre o poema com a leveza de quem sabe se despojar dos exageros, para pousar serenamente seus significantes e significados. A musicalidade rege amores e abismos, dependendo apenas da intenção de sua batuta:

ele vê o que não quer

o que não ouve

e sente

o mundo ao redor da melancolia

a íris de jezabel

o santo graal dos loucos

com a palma da mão

a ponta do pé

o ouvido esquerdo

há um olho em cada cova

do corpo

plasmando paisagens ao acaso

os arbustos da pérsia que decoram calçadas

o gemido da virgem

além das brumas do leito

a lua que luzia faíscas de neon

nada passa despercebido

ele enxerga o cheiro dos lírios

esquecidos na janela da alfaiataria

os muros além dos muros

que jamais foram erguidos no campo

e o fair play do fim do mundo

ele não é deus o homem

na urdidura do poema

(ÂNSIA DE UM HOMEM COMUM, de Félix Alberto Lima em “Filarmônica para fones de ouvido”)

Ambos são escritores do seu tempo e do tempo que inventam através de um relógio de palavras que registra os segundos, os minutos e as horas da imaginação.

Por falar em tempo, um sabiá do alto de uma palmeira me avisa que é hora de largar a prosa e deixar cantar a poesia. Ouçam, portanto, os rugidos poéticos de Salgado Maranhão e a filarmônica de versos – para além dos fones de ouvido – de Félix Alberto.

*Carlos Dimuro é poeta, curador, diretor cultural e presidente de honra da ABA – Museu Nacional de Belas Artes.

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