Bruna Talarico, Jornal do Brasil
RIO - Há pouco mais de seis anos, a jovem Gabriela Prado, 14, levou um tiro no peito ao ter ficado entre o fogo cruzado de policiais e bandidos na estação de metrô São Francisco Xavier, na Tijuca. E cinco anos após a morte de sua filha – durante os quais lutou contra a violência que matou Gabriela, intensificou o fumo e descuidou da saúde – a psicóloga Cleide Prado foi vítima fatal de um acidente vascular cerebral (AVC), decorrente de problemas cardíacos e de pressão acentuados após a tragédia.
A história de Cleide ilustra a de outras centenas de mães e famílias que, vítimas de eventos violentos, desenvolvem hipertensão e problemas cardíacos, como exemplifica a pesquisa Correlação entre transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), luto materno e distúrbios cardiológicos, da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Somente no último ano morreram, também por problemas de coração, Euricéia Azevedo, a Teia, mãe de uma vítima da chacina do Maracanã, de 1998, e fundadora do Grupo Mães do Rio, e Vera Lúcia Flores, uma das Mães de Acari.
– O estresse desse tipo de trauma violento leva a uma excessiva liberação de adrenalina, nor-adrenalina e cortisol, que atuam sobre a inervação da ponta do coração, impedindo a contração do órgão. Dessa maneira, o funcionamento do sistema cardiovascular fica comprometido – explica a psiquiatra Vera Lemgruber, coordenadora da pesquisa.
De acordo com o estudo, os afetados pelo problema sentem ainda sintomas que simulam um infarto agudo do miocárdio, com dor no peito, alterações no eletrocardiograma e nas enzimas cardíacas.
– Isso acontece porque as pessoas que vivem essas situações de violência extrema não passam somente por momentos em que lembram com tristeza do que aconteceu: elas revivem dentro do próprio corpo a situação de ameaça – ressalta Vera. – E por conta disso o sistema de alarme, que só devia ser acionado em momentos de perigo, fica o tempo todo ligado, levando a essas descargas excessivas de adrenalina e cortisol e a consequentes problemas cardíacos.
E esse foi o processo que consumiu Cleide, segundo seu viúvo, Carlos Santiago.
– Como psicólogos, sempre tivemos certeza de que o lado emocional acaba transparecendo no lado físico – associa. – E a Cleide teve uma piora no problema de pressão, que subiu bastante, passou a aumentar o cigarro e chegou a fumar três maços por dia, não cuidava mais da alimentação e não respeitava os horários de lazer, porque estava o tempo todo lutando junto a outras mães que também perderam seus filhos para a violência.
Para Santiago, que também participa de movimentos contra a impunidade e em nome da filha Gabriela e chegou inclusive a passar por problemas com o álcool após a morte da filha, as mães que mais se envolveram foram as que mais padeceram de problemas de saúde.
– Cada um procura um meio de se apoiar em um momento de dor. E quando você se desgasta tanto com um trauma, você acaba abreviando sua vida física. Foi o caso da Teia (da Chacina do Maracanã) e de muitas outras – lembra. – O problema é que você não acredita que vai superar a perda, e então se anula, perde o medo da morte, que chegam a ser considerada uma bênção se for encarada como um momento de reencontro. As famílias ficam tão desestruturadas que se desesperam e anulam.
Também vítima da violência urbana, o taxista Paulo Roberto Barbosa Soares perdeu o filho João Roberto, de 3 anos, para o despreparo de policiais. Eles dispararam ao menos 17 tiros contra o carro em que sua mulher, Alessandra, estava com João e o outro filho, um bebê de então nove meses, que sobreviveu. Hoje, oito meses após a perda, Alessandra ainda sofre com depressão e hipertensão, agravada pela gravidez de quase nove meses de Amanda, terceiro filho do casal.
– Cada um tem uma reação. A Alessandra está medicada para normalizar a pressão e a depressão, está sento o tempo todo monitorada e de licença do trabalho, descansando. Minha sogra teve depressão, diabetes de fundo emocional e chegou a ficar internada por três dias. Um primo meu teve úlcera, minha mãe também ficou deprimida – enumera. – A Alessandra chora muito, o tempo todo ainda. É uma dor que nunca vai embora.
Segundo dados da pesquisa da Santa Casa, os eventos traumáticos podem afetar, direta ou indiretamente, até 12 pessoas entre amigos e familiares das vítimas diretas da violência, que não apresentam somente sintomas cardíacos ou de pressão alta. O transtorno do estresse pós-traumático, também estudado pelo Serviço de Psiquiatria da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, tem status de doença e é o responsável pelo desenrolar dos outros sintomas físicos.
A pessoa acometida pelo transtorno – que tem sua incidência agravada em casos nos quais não ocorre acompanhamento psicológico desde o evento traumático – passa por projeções de memória, sonhos ou pesadelos, desligamento de outras pessoas e rejeição de atividades e situações remanescentes do trauma. E, muitas vezes, morre sem saber.
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