Mesmo antes desse seu projeto recente sobre alienação e falta de abraços em filmes como Elefante e Paranoid Park, o diretor Gus Van Sant já demonstrava interesses em discutir esses temas em boa parte da sua filmografia, e esse olhar sobre a juventude parece ser o tema que a costura. Seus meninos que andam por aí em um mundo pronto para ferrá-los na próxima esquina estão cercados de quem sequer faz idéia da dimensão da sua solidão. E sobre essa dimensão de difícil alcance Gus Van Sant se debruça.
Neste texto procuro entender e discutir como se constitui a filmografia desse diretor que se dedica a filmar a juventude, e sobre a forma como o seu trabalho se desenha como um projeto de olhar.
Quando Gus Van Sant parou para olhar os adolescentes de Elefante (2003) irem e virem na escola, sendo potenciais assassinos ou não, ferrados ou não, ele parecia querer nos dizer que as explicações dadas não eram o bastante, e com o tempo e falta de razão desses sucessivos casos de violência, já podemos notar que realmente não são. Com o seu olhar lançado que não explica, mas se esforça pra chegar perto, Van Sant constrói seu exercício. Exercício que para ele não parece ser possível de ser feito sem este debruçar, sem esse tempo dado com seus longos planos de acompanhar. E perceber sua busca traz uma esperança ao que a linguagem alcança, e traz também questões que orientam esse revisitar de sua obra. A partir daí é importante pensar sobre como a linguagem cinematográfica, como ferramenta de Vant Sant, possibilita olhar e partir do olhar lançado e do que se filma, discutir essa dimensão de difícil alcance que chamamos juventude. E para discutir isso precisamos compreender seus procedimentos de criação. O crítico Luiz Carlos Jr. ilumina essa procura ao tratar do filme Elefante em texto para a revista Contracampo.
A câmera não simplesmente escolhe um ângulo de onde a ação se torne visível e assume uma postura passiva: muito pelo contrário, a câmera interage com os personagens, acompanha-os de muito perto, explora os interiores da escola a ponto de mesclar-se a esse ambiente, fazer parte dele como nunca nenhum outro filme fez. Lá aonde todos chegam repletos de teses pré-formuladas e realizam enquetes somente para ajustar os depoimentos às suas premissas, Van Sant encontrou vidas diferenciadas e as deixou acontecer, para depois emprestar-lhes sua visão de cineasta - e aí sim o filme emerge como uma construção inteiramente nova, que insere elementos visuais e sonoros que estariam ausentes no simples registro “direto).
Os procedimentos do diretor para construir esse universo em que vivem seus meninos e meninas não é simples, apesar de o resultado por vezes parecer ser. Essa proximidade que por vezes já foi tentada pode facilmente cair no vazio se o interesse não for verdadeiro, se não se tratar de um buscar compreender genuíno, e Van Sant busca, mesmo que a compreensão não seja um fim. E entender seus procedimentos de acompanhar, entrecortar e dizer ajuda a compreender a relação que o diretor estabelece com o que ele filma. Ajuda a compreender também a crença do diretor de que esses meninos e meninas antes de serem explicados, precisam ser vistos.
O filme que trouxe o desejo de escrever esse texto foi Paranoid Park, filme de 2007 que sozinho chega como um furacão calmo, e junto a filmografia de Van Sant ganha força nesse projeto de olhar. Mais uma vez temos um jovem que o diretor nos chama a olhar. Talvez Gus Van Sant nos chame para dizer que o que se passa com os meninos que ele decidiu olhar não é algo que pode ser tão facilmente explicado assim visto de fora, ou através de alguma sociologia ou psicologia generalizante. Talvez ele queira lhes dar o tempo que a velocidade da vida cotidiana contemporânea não lhes dá. E ele olha, e filma, filma e acompanha. Daí acompanharmos Alex e seu drama, e acompanharmos outros tantos meninos em seus rodopios, trejeitos e falta de jeito com seus skates através de filmagens em super 8 que parecem nos levar pra mais perto, e levam.
Estar ferrado, não ter beijado na boca, ou ter acesso fácil a metralhadoras não explica somente o fato de dois jovens irem à escola e matar os colegas e funcionários, como fizeram os jovens Dylan e Eric em Columbine em 1999, e como fizeram também os jovens filmados com outros rostos por Van Sant em Elefante. O que o diretor parece dizer é que esses meninos, que podem ser tantos outros, precisam ser olhados com a lentidão, e a atenção que vai do seu andar ao seu ter nada a dizer. Essa, para Van Sant, parece ser a única postura possível de quem sempre vai ser o outro, desse lugar que é sempre de fora. Fora que é sempre um outro lugar. E como é sempre de fora que vamos estar, então, ele só olha. Olha, olha, acompanha e lhes dá o tempo que não lhes fora dado. E é nesse projeto de olhar e acompanhar tão simplesmente que se revela a complexidade desse projeto de Gus Van Sant. Quando Paranoid Park termina (e não se encerra) o mundo muda, um menino e outros nos foram apresentados. Parar pra olhá-los nem sempre é fácil.
Em Paranoid Park há um menino protagonista, há algumas meninas. Há uma menina feia, mas que também é linda que faz bem aquele menino por se importar. E há também um amigo que não se importa de não gostar da namorada, “afinal é melhor do que não ter ninguém pra transar”. Há os skatistas mostrados seja pela película de Van Sant, ou por seu super 8 que parece mais um vídeo feito por um deles. O menino Alex matou um homem com um gesto tão veloz e bobo que poderia ter sido uma manobra de skate, ou um aceno, mas o mundo já é outro.
E Gus Van Sant mostra e mostra, o drama está todo lá de forma mais óbvia e de forma muito menos clara ou objetiva para quem estiver desatento sobre o que é viver. Van Sant filma e entrecorta seu drama intercalado das imagens em super 8 dos skatistas flutuando no ar rarefeito que lhes parece dar suporte e lhes fazer rodopiar. As imagens em super 8 muito dizem, e parecem demonstrar esse desejo de Gus Van Sant em querer entender esse ar, essa dimensão que esses meninos flutuam com seus skates à despeito do peso que é viver e ter, quem sabe, dezesseis anos. E o fato de o realizador se propor a examinar isso, e acreditar nesse olhar lançado torna seus filmes, que juntos poderiam ser tratados sobre a juventude, se tornarem na verdade poemas sobre um esforço de compreensão, sobre viver em um tempo, sobre muitas coisas.
Ainda no início de Elefante, temos um menino com sua camiseta amarela indo pra escola com o pai bêbado, e depois, na escola que viria a ser revirada pelos assassinatos dos outros dois jovens que talvez sejam mais ou menos ou tão ferrados quanto esse, o menino chora ainda naquele início, fica vermelho, e uma menina lhe beija o rosto. É o que acontece, e contar isso aqui não parece suficiente já que o poder está inteiro na câmera de Gus Van Sant e na sua paciência de não dizer com o que ele acha, mas dizer com o que ele vê. E isso faz com que “achar” e “saber” sejam pontos de dificílimo alcance.
O escritor uruguaio Eduardo Galeano escreveu uma vez no seu “Livro dos abraços” sobre “Um sistema de desvínculo: Boi sozinho se lambe melhor… O próximo, o outro, não é seu irmão, nem seu amante. O outro é competidor, um inimigo, um obstáculo a ser vencido ou uma coisa a ser usada. O sistema, que não dá o de comer, tampouco dá de amar: condena muitos à fome de pão e muitos mais à fome de abraços.”
O exercício de Gus Van Sant parece ser o de compreensão dessa outra fome que exige mais para ser reconhecida, e enquanto os observa e lhe dá uma atenção por vezes não dada ele parece chegar mais perto disso, dessa outra fome que talvez o beijo no rosto do menino em Elefante signifique.
Tainah Negreiros- é historiadora e tem trabalhos publicados na área de leitura histórica de obras cinematográficas e de literatura. Possui experiência em projetos educacionais e produções independentes que dialogam com a memória, o tempo e a afetividade. Graduada em História pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).
Texto publicado originalmente na revista universitária do audiovisual (RUA) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR).
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