sábado, 21 de novembro de 2009

Ex-prefeito de Salvador entrevista o compositor Antonio Risério


O blog Dom Severino transcreve esta entrevista concedida ao compositor e antropólogo baiano Antonio Risério, ao ex-prefeito de Salvador, Mário Kertész e publiada originalmente na revista Metrópole. Uma entrevista que no primeiro momento, nos parece tratar de assuntos relacionados só a capital baiana, mas que no decorrer da entrevista, percebe-se que os problemas abordados e propostos para debate e vividos pela capital da Bahia, são os mesmos encontrados nas demais capitais brasileiras. Daí a sua importância no contexto nacional. Mas Antonio Risério, também foi instado a responder sobre questões nacionais, que dizem respeito a um governo do qual ele foi servidor até bem pouco tempo, ao que respondeu com muita sinceridade e com uma lucidez impressionante. Vale apena conferir essa entrevista, que também toca na ferida das disputas regionais. Antonio Risério (Salvador, 1953) é um poeta, tradutor, antropólogo e ensaísta brasileiro. Confira:

Mário Kertész – Risério, a pergunta que eu quero fazer um pouco
simbolicamente é a seguinte: nós estamos mais para Bombaim ou para
Nova York? Eu falo a cidade de Salvador, que tem crescido muito, inclusive
em termos populacionais, nos últimos anos. Esse crescimento se dá
basicamente em cima de uma população mais pobre que não tem acesso a
uma educação decente, porque não existe uma educação pública decente.
Antonio Risério – A pergunta é complexa. A pobreza de Salvador
pode ser vista até por um marciano, pode ser vista de satélite. Eu
tenho até vontade de fazer esse levantamento. Você pega o número
de pobres da cidade, o número de ricos e vê a extensão do espaço urbano
que eles ocupam. Nas áreas mais pobres quantos habitantes têm
por quilômetro quadrado? Com as favelas verticalizadas, com as casas
umas coladas nas outras. E no outro extremo, quantos habitantes por
quilômetro quadrado nas áreas ricas? Nos prédios com suas áreas de
lazer, piscinas, quadras, ou nos condomínios de luxo. Você vai ter provavelmente
uns 50 mil habitantes por quilômetro quadrado em uma
área pobre, e uns 500 habitantes por quilômetro quadrado em uma
área rica. Se a gente fizer um levantamento desse, a gente vai ter um
retrato preciso e brutal de como a pobreza se expressa em cada centímetro
do solo da cidade. As pessoas podem dizer que alguns índices
melhoraram. É provável que sim, os índices melhoraram no país todo.
A qualidade do emprego também parece que tem melhorado, aqui e
ali. Isso pode ser importante, assim, no plano individual, porque uma
pessoa que passa a ter um emprego melhor realmente muda de vida.
Mas em conjunto, essa mudança é uma melhorazinha insignificante,
porque a pobreza continua imensa. Há onze anos, Salvador sempre
apresenta a mais alta taxa de desemprego entre as capitais do país.
Esse título ninguém toma da gente, nós somos imbatíveis na incompetência
para gerar emprego. Outro dia eu soube do secretário do
Trabalho, falando de boca cheia na mídia que, no ano passado, 120
mil postos de trabalho foram criados – isso é ridículo. É uma cifra pro
governo se envergonhar. Na população da Bahia, uma cifra dessa não
significa nada. Pra começo de conversa, 120 mil postos lá no passado
teriam outro sentido. Em Salvador, a gente tem sido tradicionalmente
incompetente na geração de emprego e renda. O estado não tem se
desenvolvido porra nenhuma. Basta comparar com Pernambuco, em
todos os seus aspectos, em projetos, em ações, os próprios recursos do
PAC. Pernambuco com porto, refinarias, estradas e tal, a Bahia porra
nenhuma. Salvador também não tem crescido nada. E a população
tem aumentado muito, e essa segregação espacial é cada vez mais brutal.
De outra parte também, a gente tem uma coisa: nós festejamos
o que não devíamos, o que não tem mais o que festejar. Falam-se dos
índices da educação, aumentaram os números da escolaridade. Na
verdade, não aumentou o número da escolaridade, aumentou a produção
de analfabetos bossalizados por uma formaturazinha qualquer.
Analfabetos de canudinho, que não sabem porra nenhuma. Então isso
é falso, não tem que ser festejado. Ainda tem outra coisa, que é a
coisa da pobreza aqui, porque a pobreza baiana engana muito, embora
ela seja muito visível. Você vê o retrato da pobreza na África e na Ásia,
são corpos esqueléticos, esquálidos. Aí outro dia, um amigo meu, Luiz
Chateaubriand, que pesquisa muito essas coisas, me disse que a pobreza
baiana é uma pobreza gorda. Agora essa gordura vem de onde?
Vem de uma alimentação de merda, de péssima qualidade. Então o
Chateaubriand, quando vê um gordo passando na favela, fala: “lá vai
ali um sujeito explodindo de pobreza”. 150 quilos de miséria. Eu acho
que não tem nenhum estudo sobre isso, mas é uma pobreza gorda.
Enfim, eu acho que Salvador é um escândalo social. E é evidente que
a gente está cada vez mais próximo de cidades como Lagos. Não é afro
só no Olodum e no Ilê Ayê não, é africana na miséria.
MK – Por outro lado, a nossa elite, inclusive a chamada elite intelectual,
a elite que tem acesso aos meios de comunicação, que dirige
jornais, revistas, televisões e até alguns políticos, sempre ficam sonhando,
ou pensando, que é possível transformar Salvador em Nova York. Eu estou
citando Nova York, mas podia ser Zurique, ou Paris, que é o grande sonho
de todo mundo, uma cidade bonita, ordenada, sem barraca de praia,
sem restaurantes no meio da rua, sem os cacetes armados que cada vez a
gente vê em maior quantidade, sem os camelôs. Sim, e o que a polícia
administrativa, que no caso é a prefeitura, o que que ela pode fazer para
realizar o sonho dessa elite? Sonho que se manifesta, inclusive, nos novos
empreendimentos imobiliários – você vê aí é Manhattan Square, Le Parc,
Vale do Loire, e por aí vai.
AR– Primeiro lugar, eu também acho que deveria se perguntar o que
que a polícia podia fazer com essa elite. Porque essa elite infringe todas
as regras, não tem educação urbana, não tem uma visão do significado
dessa cidade. Na verdade, Mário, eu acho uma coisa muito grave, eu
acho que a atual população de Salvador não está à altura da cidade
que herdou, não está à altura da cidade que recebeu, por isso que está
avacalhando ela a cada dia que passa. Uma cidade cada vez mais maltratada,
mais feia. É uma elite desinformada, provinciana, colonizada,
mimética. Eu vivi minha adolescência na cidade de Jorge Amado, de
Vivaldo da Costa Lima, de Pierre Verger, de Caribé, de Glauber Ro-
“Eu não vejo ninguém pensando a
cidade em seu conjunto. Salvador
é um vilarejo com elefantíase,
administrada como um interior”
cha. E hoje é a cidade de quem? De Nizan Guanaes? Do axé music?
De Bel do chiclete? Do prefeito que nós temos? Dos quadros políticos
atuais? Um drama da gente hoje é que Salvador tem crescido muito.
Salvador é atualmente uma cidade grande, onde todo mundo pensa
pequeno. Os empresários, os políticos, os intelectuais, os artistas...
Isso é um drama. Quanto mais a cidade cresce, mais o pensamento é
menor, se é que a gente pode falar de pensamento. Salvador também
não é só a cidade do desemprego, como a gente estava falando, é a
capital da desinformação, da sub-cidadania. Agora, pergunta-se o que
que vai a prefeitura vai fazer. Eu acho que a visão da prefeitura não
destoa em nada desta visão de destruição da cidade, pelo contrário, ela
própria é promotora da depredação de Salvador. Ela vem avacalhando
a cidade sistematicamente. Eu acho que o prefeito de Salvador devia
antes de assumir o cargo tomar um curso básico do que é Salvador
e do significado dessa cidade. Ao mesmo tempo você fala dessa elite
com esses prédios que são ridículos esteticamente. Essa elite é um
exemplo acabado de capachismo mental, que não sabe onde vive. Eu
acho difícil, acho muito complexa a situação que estamos vivendo, e
só fico cada vez mais triste, porque eu não vejo ninguém preocupado
em encontrar soluções para isso, ninguém pensar a cidade em seu
conjunto. Salvador virou um vilarejo com elefantíase e só tem programazinhos
pontuais. Ela é administrada como uma cidade do interior.
Essa elite que pode querer escorraçar os pobres dos lugares é a mesma
que não sabe se comportar em relação ao espaço urbano e também invade
calçadas e terrenos públicos. Eu acho que a gente precisa de uma
grande polêmica, uma grande discussão hoje em Salvador.

MK – É isso que é complicado porque eu, por exemplo, quando tento
provocar isso, fica parecendo muito uma birra pessoal, porque poucas são
as vozes que se juntam. Por isso eu quis conversar com você. Teve um processo
mais recente, quando nós chegamos à prefeitura em 1986, não falo
por mim que fui prefeito, mas por você, por João Santana, Roberto Pinho,
Lelé, grande arquiteto, Eliana, Wally Salomão, Gilberto Gil... Na época,
havia uma massa de pessoas que pensavam a cidade, e que olhavam a cidade
com uma visão não provinciana e dando a Salvador o valor que tem
e que se perdeu. E depois? A administração de Fernando José, desastrosa,
a de Lídice da Mata, um horror, depois o capataz da fazenda de Antonio
Carlos Magalhães, porque Imbassahy só foi o capataz decente, daquele
que tratou a elite toda bonitinha, os espaços da elite limpos, organizados e
ordenados. E depois João Henrique, que a tirar pelas pessoas em volta dele,
você vê que não há nenhum pensamento crítico em relação a Salvador. A
mesma coisa acontece hoje, infelizmente, em relação ao governo do estado
da Bahia, não é? Nosso querido amigo Jaques Vagner, com toda amizade
e tal, e aí? Qual o projeto que a Bahia tem? Não se discute, não há debate.
Há apenas uma tentativa sindicalista de tomar conta e aparelhar os
órgãos do estado. Como é que a gente provoca esse debate, Risério?
AR– É difícil provocar esse debate, mas eu queria falar uma coisa
antes. Quando se falou que não há um projeto de cidade, não há!
O que é que você espera, por exemplo, em uma eleição como a que
acabou de acontecer, onde há dois candidatos disputando o segundo
turno, e que supostamente teriam visões diferentes da cidade?
O que era de se esperar, é que tivesse um jogo ali, duas concepções
distintas de Salvador, dois modelos distintos de cidades, dois modos
diversos de pensar o problema urbano, de ter programas pra ele.
Não! Os dois eram absolutamente idênticos. Só um dizia que podia
gerenciar melhor que o outro. Ou seja, diante dessa opção eu prefiro
pagar multa ao tribunal. Chegamos a esse grau tão baixo. Não há
formulação nenhuma, e nem pensamento, quer dizer o que eu penso
sobre Salvador é igualzinho ao que você pensa. Quando se estava
em jogo, supostamente, correntes de pensamentos diferentes, não,
porque não existem pensamentos. Eram dois subgerentes ali, que
em matéria de conhecimento de Salvador, muito provavelmente são
incapazes de distinguir um extintor de incêndio e uma orquídea. É
um negócio muito pobre. O debate está cada vez mais difícil também,
porque ao mesmo tempo está todo mundo muito satisfeito.
Primeiro não há idéia, não há pensamento, segundo não há espaço
na mídia pra essas discussões, terceiro eu não sei se realmente as pessoas
estão interessadas nessas discussões, e se tem preparo para isso.
Porque eu não acredito que a câmara de vereadores e que as pessoas
estejam preparadas para um sabatina sobre Salvador, em qualquer
aspecto da vida da cidade. O debate aqui está atravancado em todas
as áreas e por ausência de pensamento. As pessoas dizem que quando
aumenta o grau de escolaridade, vai ter ascensão social, a nova classe
média e tal. O que você espera teoricamente é que a ascensão social
aumente o seu grau de exigência em relação aos serviços públicos, ao
funcionamento da cidade. Você espera que se modifique o trato com
“O que a gente chama de ascensão
social é o cara que era fudido e
meio e agora é só fudido, não altera
muita coisa”
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a cidade. Mas isso é só teoricamente, por que
a elite que já tá lá em cima, não sabe tratar
da cidade. Essa ascensão social é importante
sim, no plano social, mas também no conjunto.
O que a gente chama hoje de nova
classe média, de ascensão social, era o sujeito
que era fudido e meio e agora é só fudido,
não altera muita coisa. As pessoas acham assim,
que botou o bolsa-família, uma grana
e tal, a pessoa vai ter uma mudança. Isso é
uma visão muito primária, muito economicista,
porque você dá um dinheirinho para
complementar a renda familiar, mas não dá
condições culturais, morais, espirituais das
pessoas romperem com o ciclo de ferro da
subcidadania. Mas você vê as empregadas
domésticas, elas continuam sendo treinadas
para vender o corpo, não transcende esse
horizonte, então essa ascensão social não vai
modificar culturalmente isso. Vai continuar
sendo a estética Lauro de Freitas, a estética
Feira de Santana, que aliás foi à estética
em que foi criado o prefeito de Salvador, o
que tudo indica que não a transcendeu.
Quando eu falo estética de Feira de Santana
é a cultura do cacete armado, a cultura
do armengue, a incapacidade de distinguir
formas, de lidar com os elementos da cidade.
No caso ainda, voltando ao caso da elite,
é muito engraçado, porque ela quer que as
coisas modifiquem, mas em função dela,
e não em função da cidade. Não se trata
de pensar em termos de soluções urbanas
para a cidade, não se trata de discutir
imobiliário urbano, não se trata de melhorar
os serviços da cidade. Trata-se de
melhorar o circuito de cada um, ou seja,
a cidade que se foda. E ficam fazendo de
conta que tão morando aqui, ali, colocam
aqueles nomes em inglês nos prédios, mas
estão morando num favelão, num vilarejo
com elefantíase, e tem o mesmo nível
mental, ou mais baixo, do que esses analfabetos
que estão se formando nas nossas
escolas porque nem sabem falar português
direito. Fica difícil debater sem interlocutores,
porque pra debater você tem que ter
com quem debater, e isso está faltando. A
cidade poderia ter muitos mecanismos de
voz para as pessoas se expressarem, tem
mais que antigamente até, mas onde é que
está o pensamento que essa voz vai ter?

MK – Mas Salvador se prostituiu muito e se
transformou numa cidade tida como o turismo
sendo o grande gerador de emprego e renda e,
portanto, tudo ao turismo. O carnaval de Salvador
sendo louvado como a maior e mais democrática
festa do planeta. Para mim, ela não
tem nada disso. Para mim isso é uma babaquice,
que não tem o menor sentido. Você vê a gente
sendo vendido e louvado também por uma classe
média paulista que adora vir para cá, usando
o paulista no sentido figurado e real também;
adora ter um apartamento aqui no Corredor da
Vitória, fazer festas e essa coisas, como é que isso
bate aí na vida de Salvador, nos últimos anos,
na sua visão?
AR– Para aproveitar que você falou de São
Paulo, eu antes fazia uma comparação. Salvador
é uma cidade desleixada, mas com
uma coisa sofisticada, isso na década de 60,
70, ao contrário de São Paulo. São Paulo
é uma cidade que é o reino da grossura
onde tudo é bem tratado. Salvador continua
desleixada, mas perdeu a sofisticação.
Hoje ela junta o que havia de pior em São
Paulo com o que havia de pior aqui que é o
desleixo. E com esse casamento de maltrato
e grossura, eu concordo com você, acho
que Salvador é uma cidade naturalmente
sedutora, e se transformou numa profissional
da sedução com essa coisa toda. O carnaval,
Mário, eu acho que não existe mais,
eu acho que existe uma festa aí que, por
comodidade, a gente dá o nome antigo de
carnaval, mas que não tem nada a ver com
o que era carnaval. Numa situação hoje que
nem consegue ser aquele super espetáculo
que é o carnaval carioca, nem consegue ser
de fato uma festa de participação popular
como é o de Pernambuco. É o momento
perdido, está espremido entre os dois extremos,
não consegue ser espetáculo e não
consegue ser participação. Esta é a miséria
do carnaval cultural, nesse sentido que virou
uma porção de discotecas vendo shows
de bandas. Não tem mais nada a ver com o
que era. Isso faz parte de todo esse processo
de transformação de descaracterização da
cidade, que tenta oferecer esses espetáculos
high-techs, que são “chinfrins”, na verdade,
que são culturalmente muito pobres,
e, que, mais uma vez, também nesse caso,
não precisou de polícia administrativa, foi
o próprio poder econômico das elites que
escorraçou o povo das ruas.

MK – Como é que você vê, por exemplo, o
fato de Recife continuar tendo um carnaval
de intensa participação popular? Os blocos
imensos, sem cordas, como é que funciona,
qual é a diferença?
AR– Eu acho que a gente pode pensar isso
até em um quadro maior, porque compare
as associações comerciais e as federações
das indústrias da Bahia e de Pernambuco.
Lá você tem projetos, programas, tem
ação, tem pensamento, aqui você não tem
nada. Os empresários, o empresariado
baiano, o governo e tal, eles passaram um
ano, sei lá, à espera da Toyota. Parecia um
R e v i s t a M e t r ó p o l e - n o v e m b r o d e 2 0 8 31
messias, era a fábrica redentora que vinha
não sei o quê. A Toyota não veio, nada.
Vai para outro plano, o da atuação do
poder executivo. Eu me referi às obras do
PAC, ao governo de Pernambuco cheio de
projetos, executando coisas. Pernambuco
está tendo uma efervescência, nesse sentido,
de discussões, do futuro do estado,
da construção de uma refinaria, da montagem
de uma infra-estrutura. Pernambuco
até poucas décadas continuava sendo
um engenho e a Bahia industrializada.
Pernambuco está passando velozmente a
Bahia. Pegue em todas as áreas, Mário.
Pegue a música pernambucana, de manguebeat,
de não sei o quê. É muito mais
vital, criativa, mais preocupada com a realidade
local. Muito mais empenhada na
vida pernambucana, muito mais realista,
muito mais crítica. Compara no cinema.
A vitalidade e a criatividade do cinema
pernambucano e esse narcisismo de província
que é o cinema que se faz na Bahia.
Compare em todas as áreas, no Carnaval.
Pernambuco mantém um carnaval vital,
criativo, popular. Quer dizer, em todos
esses planos a Bahia ficou para trás. O ritmo
de que ela se orgulha tanto, a Bahia
perdeu o ritmo. Ela está paralisada neste
sentido. Enquanto em Pernambuco você
ainda tem discussões culturais, onde entra
o carnaval, na Bahia é a lógica da caixa
registradora. Não há mais preocupações
além disso. Você vê o artista pernambucano
preocupado muito com a linguagem
de sua arte e o artista baiano preocupado
com o seu nicho no mercado. A Bahia está
muito pobre neste sentido. E muito satisfeita
consigo mesma. Por que você vai
dizer a um artista de axé music que está
ganhando milhões que ele precisa mudar
o trabalho dele? Está todo mundo muito
satisfeito.

MK – Eu sinto um ar de decadência tomando
conta da Bahia. E esse negócio dá uma
certa pré-depressão, sabe? Eu sinto que nós estamos
vivendo uma fase muito negativa.
AR– A gente falou de política. Compare os
quadros políticos pernambucanos e os baianos.
Compare a Câmera de Vereadores de
Recife e a de Salvador. A de Recife discute a
cidade de fato, apesar de todas as falcatruas,
do baixo nível, etc, mas o engajamento do
habitante de Olinda e Recife com Olinda e
Recife é qualitativamente diferente de uma
certa indiferença que você vê na Bahia. O sujeito
está preocupado com o seu condomínio,
com a sua barraca de praia. Nós destruímos
a orla, nós estamos esculhambando a cidade.
Eu acho que a população atual de Salvador
não é digna da cidade. Ela não está à altura
de Salvador. Isso já vem há tempos. Eu me
lembro, Mário, de uma campanha publicitária
de Salvador que era para ter uns outdoors
em Rio e São Paulo. Comemorando a data,
ou foi na época do ano 2000, uma coisa assim,
e... eu fiz um outdoor pra uma agência,
fizemos uma peça, onde a gente falava o que é
obvio: era Salvador uma cidade que começou
a existir para que o Brasil existisse, e é isso
que Salvador é. Os clientes na época, que era
o poder público, acharam que era muito pretensioso
aquilo. Como é que pode ocupar o
poder público com uma pessoa que não sabe
o significado do lugar que dirige?

MK – É claro, evidente, não é?
AR– Então não, a propaganda tem que ser
assim: Bahia, 300 dias de sol, de festa, etc.

MK – O carnaval de gente bonita...
AR– Carnaval de gente bonita!

MK – Porque aqui, no carnaval, só se fala
isso. No camarote estava cheio de gente linda, de
gente bonita...
AR– Parece uma piada né? Isso que é entristecedor
também, quer dizer, onde é que você
podia ter um massa crítica que se discutisse o
debate, quando você falou do debate, entre
arquitetos, alguns empresários, intelectuais,
artistas? Aí você vai num camarote e estão todos
eles lá! Então eles são iguais àquilo, eles
fazem parte daquilo, eles são aquilo, então,
eles também são mais do que objetos de debates,
mais do que possibilidades de debates,
eles devem ser objetos de combate. Eles precisam
de uma crítica severa e dura. Como é
que eles podem falar, discutir o carnaval, se
eles são os camarotes? Como é que podem
discutir os problemas urbanos de Salvador se
eles são a Vitória? Eu digo são a Vitória no
seguinte sentido: Salvador sempre foi uma cidade
dividida em dois andares lindamente, e
aqueles edifícios enormes na Vitória detonaram
a linha que dividia Salvador em duas. E
Salvador não tem mais esse negócio de dois
andares. Destruíram o desenho da cidade.
Então é difícil debater porque essas pessoas
são essa merda que a gente está criticando.
E eu digo todas, no poder público, entre os
intelectuais, entre os técnicos. Elas são isso,
“Acho que Salvador é uma cidade
naturalmente sedutora e se transformou
numa profissional da sedução”
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elas são a cara de Salvador hoje e é por isso
que eu vou repetir a frase em seu conjunto: a
população atual de Salvador não está à altura
da cidade que herdou. Ela é essa Salvador avacalhada,
do camarote, da invasão de terrenos
públicos, não por pobres, mas pela elite.

MK – Você acha que há um processo de acomodação
generalizada, assim no sentido de:
“olha, bota a sujeira toda debaixo do tapete e
não vamos discutir”?
AR– O problema é que não dá pra colocar a
sujeira debaixo do tapete porque a sujeira é
muito maior...

MK – Pois é, eu também acho isso, e cada
vez maior, não é?
AR– E vai ser cada vez maior se continuar
do jeito que está. As pessoas falam da violência
urbana, por exemplo, e se protegem
nos condomínios. Violência urbana não tem
nada a ver com pobreza nesse sentido. Em
nossa adolescência, nós vivemos em uma cidade
pobre, mas uma cidade que tinha trato
urbano, civilidade, uma cidade que não
tinha violência. A violência não é fruto da
pobreza, ela é fruto da desigualdade extrema,
é o povo escorraçado. As desigualdade
sociais, quanto mais elas se acentuam, mais
violência elas produzem. Então, o medo que
as pessoas sentem do espaço urbano, as pessoas
sentem do espaço urbano que foi criado
por elas, foi criado pela estupidez e ganância
das elites. É a burrice da elite. Ela criou uma
situação em que ela foi expulsa das calçadas
e, para ela ter como andar nas calçadas, ela
tem que expulsar os pobres, daí porque os
pobres ocuparam o espaço urbano, e por que
não têm alternativa. Vai batalhar dinheiro é
na sinaleira mesmo, e não adianta vir com
bolsinha de cem reais, porque se você batalha
dinheiro em uma sinaleira, você ganha
mais do que isso por mês. A verdade é que
os pobres impedidos de desfrutar dos benefícios
e das belezas que a cidade tem e produz,
eles vão tomar isso. Você tem hoje uma
situação de “barrados no baile”. Boa parte
da população está barrada no baile. A classe
média, regra geral, aceita ser barrada no baile,
resigna-se a um “muxoxo” dentro de casa,
a uma tristeza. É uma resignação amargurada
e silenciosa. Os mais pobres não, eles não
estão a fim de ficarem barrados do baile e
não vão ficar resignados e calados que nem a
classe média, eles vão sujar o baile, porque lá
dentro está uma puta festa rolando, com salgadinho,
com champagne, ainda mais com
uma ideologia muito cruel de que o êxito é
o consumo. Você quando não tem dinheiro
para participar do baile, isso não quer dizer
só que você não tenha dinheiro, isso quer
dizer que você fracassou como indivíduo,
porque o ser humano se realiza no consumo.
A gente vive em um sociedade hoje em que
o que se incrementa é a competitividade, então
as pessoas têm que estar preparadas para
competir no mercado, têm que estar preparadas
para competir, agora competir para
quê? É a competição pela competição, é o
êxito pessoal, é ter acesso ao baile. Agora,
muito pouca gente tem acesso ao baile na
sociedade que a gente vive. Enquanto a classe
média vai ficar chorando, se lamentando,
fazendo grevezinhas ocasionais, os outros
vão como à música de Cazuza, “meu cartão
de crédito é a navalha”.

MK – Tem outro dado aí que é o seguinte:
tráfico de drogas, consumo e tráfico de drogas
que gera muito dinheiro...
AR– E muito emprego.

MK – Pois é! Muito mais do que a economia
formal, a informal da cidade, e gera muita
violência em função disso, e muita repressão
policial e muita corrupção. Corrupção policial,
corrupção política, corrupção da justiça. Como
esse elemento, que não existia e que agora é cada
vez mais forte na sociedade, pode mexer e já está
mexendo no quadro em que a gente vive?
AR– Esse negócio das drogas, eu não acho
que tenha criado um estado paralelo, como
falam. Pode até ter formas fragmentárias de
“O problema é que não dá para colocar a
sujeira debaixo do tapete porque a sujeira é
muito grande”
atuações de tipos estatal, filantrópicas, tem
até seus tribunais, e tal, essa coisa de tráfico.
Mas eu não acho que chega a ser uma organização
paraestatal, é apenas um empresariado
ilegal, esse empresariado das drogas. E o
que você tem são grupos armados disputando
espaços de mercado. Nem tem também essa
história de guerra civil como falam. Guerra
civil é quando uma classe, por questões econômicas,
ideológicas, enfrenta outra. Você
tem mesmo é disputa de mercado, e o que
interessa ao traficante é que o consumidor esteja
vivo. O tráfico oferece ao jovem pobre,
além de aventura, risco, coisa que a juventude
adora, dinheiro e acesso ao consumo. Você
fica vendo o tempo todo na Rede Globo, nas
novelas, aquele padrão de vida ali...

MK – A maravilha, né rapaz?
AR– E você vai ter acesso àquilo como? Ou
tomando ou traficando. Não há muitos caminhos
pra isso. Não tem política educacional. A
política de inclusão social é muito fraca, você
não tem inclusão cultural, não tem nada. Na
verdade, essa periferia é abandonada, é um
prato cheio, claro, para o tráfico. Com um
agravante, que eu acho hoje, que é o seguinte:
antes a gente falava uma coisa assim, que o
que distingue o tráfico no Brasil é a base territorial.
Uma quadrilha no Brasil é um traço específico
da bandidagem brasileira, controlava
um morro no Rio, por exemplo. Aqui também
controlava alguns espaços, porque tinha
uma base territorial a partir da qual negociava;
era isso que fazia, por exemplo, com que
o crack nunca tivesse entrado no Rio. Mas
esse ano a gente viu que esse negócio foi detonado.
O PCC passou a controlar financeiramente
o tráfico carioca, então essas bases territoriais
não existem mais. O que existe hoje
são grandes “holding” do tráfico, sediadas em
São Paulo, como as grandes empresas. Então
esse empresariado paralelo está enramado no
país todo e de uma forma muito organizada.
Agora para lidar com isso a gente não pode lidar
também de uma forma hipócrita, por que
é o óbvio que se fala. Se existe tráfico existem
consumidores. Então, um sujeito que cheira
pó, num apartamento de luxo na Vitória, não
tem autoridade nenhuma para falar de tráfico
e violência urbana. Ele tem que se ver como
cúmplice, como partícipe do processo. Ele faz
parte do tráfico de drogas. Sem ele, o tráfico
de drogas não existiria. A sociedade não tem
muito essa consciência, parece que o tráfico
de drogas é como se fosse uma coisa distante
da gente. Não é, nós fazemos parte desse
circuito comercial, nós fazemos parte estruturalmente
do tráfico de drogas, nós somos
os elementos chaves, nós somos o mercado.
Se você incentiva, você faz parte do circuito,
e disso as pessoas não têm muita consciência.
Você está às vezes em uma reunião lá qualquer,
com associações discutindo o problema
do tráfico, mas ali tem 10, 15 pessoas que
fazem objetivamente parte desse processo de
funcionamento econômico do tráfico. O tráfico
está dentro da gente.

MK – O fato de ser uma briga territorial
como você falou, até o PCC chegar e comandar,
leva, por exemplo, a determinadas áreas da cidade,
das cidades, inclusive aqui de Salvador,
a serem totalmente dominadas. Nem a polícia
entra, nem serviços públicos, nem nada, como
se fosse um território estrangeiro, como se você
precisasse de um passaporte do xerife local para
poder entrar.
AR– É o que foi criado graças à complacência
dos poderes públicos que nunca quiseram
lidar com isso, sempre pactuaram com isso
nesse sentido, permitiram que isso existisse,
acontecesse e isso, alimentado pelo conjunto
social, pelo conjunto da sociedade. Agora o
que eu estou dizendo é o seguinte: existem
essas bases territoriais que são o que distinguia
o tráfico brasileiro de, por exemplo, o de
Londres e Nova York, onde você tem tráfico,
mas você não tem um morro. Você tem, em
uma cidade européia ou americana, você tem
um morro armado ali onde ninguém entra.
O tráfico existe sem base territorial. E isso é
uma coisa terrível aqui, porque existindo com
base territorial você tem comunidades controladas
e pessoas que nascem naquilo, né?
Você vê como as coisas estão reduzidas aqui,
e não só em relação à violência, mas a tudo.
Passei esse ano em São Paulo, não tinha uma
semana que eu não recebesse um manifesto
“O tráfico oferece ao
jovem pobre
aventura, dinheiro e
acesso ao consumo”
para assinar. Aí você pensa, a sociedade civil
se movimentando e tal, mas tudo era pra preservar
uma coisa. Claro que há coisas a serem
preservadas, mas não era o caso, não tem mais
critério, eu digo: até fogareiro de baiana de
acarajé virou monumento histórico. Só tinha
preocupação preservacionista e nenhum projeto
pro futuro nem pro presente? Eu entendo
também por outro lado. As intervenções
no espaço urbano de Salvador tem sido
tão desastrosas que você se sente inclinado
a preservar até tampinha de guaraná
Fratelli Vita, em vista das desgraças que
estão fazendo, mas a cidade não pode ficar
paralisada. Isso aqui precisa de uma puta
sacudida, de onde eu não sei.

MK – Eu também não... Talvez do tráfico.
AR– Vamos esperar pra ver se essa meninada
que vem por aí inventa alguma coisa.
O que resta a gente é tentar transformar o que
é possível. Você apresenta um projeto, acham
maravilhoso, mas não vai pra lugar nenhum.
Nós estamos vivendo no reino da lábia.

MK – O que é o reino da lábia?
AR– Todo mundo fala, acha ótimo, faz um
barulho, mas só fica nisso. Parece psicanalista,
que acha que resolve tudo na conversa. Aqui
as pessoas conversam sobre o assunto e parece
que o assunto foi resolvido. A conversa não é
uma preliminar pra encarar o problema. Parece
que o problema se resolve na conversa.
A conversa é um âmbito auto-suficiente onde
resolvem-se as coisas. Deveria se fazer aqui
o que o governador de Brasília fez. Proibiu
o gerúndio. “Estamos fazendo”, “Estamos
construindo”, “Estamos dando”, sempre estamos
dando alguma coisa, mas cadê as coisas?

MK – E Pedra Fundamental, uma coisa
que não se usa há 500 anos? Que nas décadas
de 1940, 50, se lançava Pedra Fundamental e
botavam até um jornal do dia na Pedra Fundamental
de um prédio público que seria construído.
Aqui tem isso, Pedra Fundamental de
uma coisa que vai construir ainda...porque não
constrói e inaugura?
AR– Então o que está faltando é a pedrada
fundamental (risos).

MK – Risério, muito obrigado, é sempre um
prazer falar com você pra dar um ânimo. Eu
ando muito desanimado.
AR– Eu fico também muito triste. Não tenho
nem vontade de sair mais.

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