A partir das figuras do escravo e do dependente,
formou-se entre nós uma massa a quem se nega o estatuto de “gente”
Bastou o resultado do primeiro turno das eleições ser divulgado e, mais uma vez, os insultos aos “nordestinos miseráveis analfabetos” eleitores de Dilma Rousseff pipocaram nas redes sociais. Enquanto isso, na grande imprensa, FHC reproduzia o preconceito em sua versão mais douta e sutil, associando o voto ao PT aos “menos informados” que, por “coincidência”, são os mais pobres.
Na raiz do problema, uma velha
tradição brasileira: a ausência de um arcabouço moral universalizado capaz de
impor como dever o respeito a todos os seres humanos, em sua dignidade
fundamental. Os “nordestinos miseráveis analfabetos” são a versão mais recente
do que Jessé Souza chamou de “ralé brasileira”. Ele mostra como, a partir das
figuras do escravo e do dependente, formou-se entre nós uma massa a quem se
nega o estatuto de “gente”.
No caso em questão, a dignidade
desses tipos sociais é duplamente negada. Primeiro, contesta-se o seu direito à
manifestação mais superficial de cidadania que é o voto. Eleitores tão
desinformados não deveriam votar, está implícito. Mas esta primeira recusa está
fundamentada em outra, muito mais profunda, que é a do direito ao
reconhecimento social já mencionado.
Ao fim e ao cabo, o que está em
jogo é a grita contra a quebra do monopólio de recursos vitais para a
reprodução das elites e para a manutenção do tipo obsceno de desigualdade que
existe entre nós. Afinal, os governos petistas empreenderam uma política de
valorização do salário mínimo e de distribuição de renda, o que fez cair a
desigualdade econômica de modo contínuo, embora em ritmo mais lento nos últimos
anos. A PEC das domésticas veio colocar mais lenha na fogueira porque, ao
regular este tipo de trabalho, atacou o mais claro resquício da escravidão no
país, uma relação que não tinha sequer uma jornada estabelecida.
Mas foi sobretudo a
democratização do acesso à universidade que feriu os brios das elites
nacionais, porque afetou diretamente um dos mecanismos mais importantes para a
sua reprodução: o acesso exclusivo ao ensino superior. As novas universidades,
a política de cotas, a expansão das vagas convergiram para fazer muitas
famílias verem um de seus membros chegar pela primeira vez a este nível de
escolaridade.
Para piorar a situação dos
preconceituosos, já partir de 2006 as políticas inclusivas do Governo
provocaram uma mudança da base eleitoral do PT, das classes médias mais
escolarizadas para as classes populares, como mostrou André Singer. Eles
acertam quando identificam a composição social do voto petista. Mas seu
preconceito não os deixa ver que os pobres tem boas razões para isso, mesmo que
o Governo tenha deixado intocados tantos outros monopólios, como o da própria
mídia que agora o ataca, e que tenha se paralisado no último mandato em áreas
tão importantes como a política cultural.
A corrupção é a cortina de
fumaça para muitos – mas não para todos – dos que repudiam o PT neste momento.
A trajetória do partido faz os escândalos que o envolvem soarem mais fétidos do
que os demais, porque ele começou a conquista do poder pelo legislativo,
chamando para si a função de fiscal do executivo, desde a redemocratização.
Agora, a pecha de “paladino da ética” é usada contra ele. Mas, todos sabemos
(mesmo que a grande mídia e os eleitores do PSDB façam questão de esquecer) que
a relação viciada entre o legislativo e o executivo é constitutiva da política
brasileira.
Tendo campanhas absurdamente
caras, o Brasil vê chegar ao poder partidos comprometidos com grandes empresas
e congressistas que votam por interesse, e não por convicção. Entretanto, por
que os tantos indignados com a corrupção não defendem a reforma política que
podia mudar esse estado de coisas? Porque a moralização do debate é uma forma
de evitar sua politização. Politização que, aliás, avançou muito pouco durante
o governo petista, o que agora pode lhe custar o Planalto. Os jovens pobres
parecem ver suas conquistas como meramente pessoais, cedendo diante da ideia de
meritocracia e esquecendo os fatores estruturais e a ausência de políticas
públicas que explicam porque as gerações anteriores não tiveram as mesmas
oportunidades. Por isso, a onda conservadora pode crescer ainda mais. Texto publicado originalmente no jorna espanhol El País
Maria
Eduarda Mota Rocha é
pesquisadora e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
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