Marcos Pasche
RIO - Por mais que críticos façam novas proposições em relação ao ensino das artes em geral, é dificílimo abandonar totalmente da análise literária os conceitos estilísticos, de acordo com os quais num dado tempo predominou um modo específico de expressão. A dificuldade se dá por estarem tais conceitos enraizados há muitos anos nos estudos, e também porque, por outro lado, a classificação estilística mostra consideráveis conveniências.
Dentro dessa linha de reflexão, percebemos que são dois os tipos de autores inseridos com destaque na historiografia artística: os oficiais, aqueles em cujas obras são exibidas de maneira bem representativa as características da escola em voga na época em que viveram; e os transgressores, ou seja, os que destoam da moda, do senso comum, da camisa-de-força em que não raro se tornam as convenções.
Só que todo rio tem uma terceira margem, e a história da arte reserva poucos lugares aos raríssimos autores que estiveram dentro e fora de seu tempo. Esse é o caso do maranhense Sousândrade, autor de peças modernas incompreendidas na romântica época de sua vida, criador de textos românticos ignorados no moderno tempo de sua ressurreição, criticamente falando. E é isso que veremos em Melhores poemas, com seleção, notas e brilhante prefácio do poeta Adriano Espínola.
São muitos os méritos do organizador da obra, a começar por uma pesquisa de fôlego com base na obscura biografia de Sousândrade e com sólida equipagem teórica a respeito das peculiaridades do texto poético. A soma de tais aspectos é manifestada nas notas de rodapé e nos comentários dispostos ao lado de alguns poemas, a fim de que seja garantida ao leitor maior clareza quando da leitura (sim, uma das funções do crítico é levar luz onde há sombras) da poesia por vezes também obscura do autor de Harpa de ouro. “A sua pessoa excêntrica somava-se à impressão de uma obra igualmente estranha, labiríntica, de difícil compreensão”, diz a introdução, precisamente intitulada “O irisado Sousândrade”.
E a maior fatura de Espínola consiste na sábia maneira com que percebe a obra de Sousândrade para além da monoperspectivação com que geralmente ela é tratada, pois se durante largo tempo os manuais atestaram ser o maranhense um representante da segunda geração romântica, os estudos responsáveis por sua retirada do ostracismo (em especial, ReVisão de Sousândrade, de Augusto e Haroldo de Campos) apontam-no exclusivamente como um artista moderno, autor de uma poética atemporal em termos de classificação. É o antigo caso em que a suposta correção de um erro generalizador erra por alardear seu acerto como fato único, generalizando-o também. Sobre isso, Adriano Espínola afirma: “Ao longo do tempo, ocorreu, assim, uma dupla injustiça. De um lado, ignorado como romântico e incompreendido como inovador, na sua época; de outro, supervalorizado como precursor vanguardista e ignorado como romântico, setenta anos depois”.
A legitimação do comentário advém da própria poesia de Sousândrade, composta por livros bastante díspares, como o moderno O Guesa e como o bastante comum Harpas selvagens. Para quem já se acostumou ou conhece apenas a imagem do Sousândrade revolucionário, causa surpresa ler, no último livro citado, os versos de “No Maranhão”, repletos do açúcar e da aquarela idealizada: “Volto à cândida capela, / Tão cheia de luz, tão bela, / Onde as salva a donzela / Canta, e olha ao lavrador; / Volto aos campos da harmonia, / Vaga infinda poesia, / Doce inata simpatia / Da natureza de amor!”.
Ao lado desses versos nacionalistas, convivem outros impregnados por outras fortes marcas da estética romântica, como o escapismo de teor lúgubre, com o qual o poeta acrescentou uma faixa negra ao seu arco-íris, fato visível em “Voar”: “Qual voa o negro corvo, / Quisera eu livre ser, / No seio azul do espaço / Voar e me perder; // Voar, voar, nos ventos / As asas estender; / Co'as nuvens embalar-me / Voar e me perder. // Voar sempre, fugir-me, / No éter me esconder, / Fugir, fugir da terra, / Voar e me perder. // Direita ao sol dos trópicos / Soltar minha alma a arder / Nas chamas que a devoram / Voar, voar, morrer”.
É notório que tais poemas não o colocam em pé de igualdade com Gonçalves Dias (de quem foi admirador confesso) ou com Álvares de Azevedo. Sendo assim, foi por sair do romantismo que Sousândrade entrou em nossa história literária. O famigerado O Guesa é, simultaneamente, um poema épico, dramático e lírico, se concordarmos com Adriano Espínola quando diz que o personagem mítico do Guesa (oriundo dos índios muíscas da Colômbia) funciona no texto como alter ego do autor. A palavra “guesa” significa “errante”, “sem casa”, simbologia aplicável ao poeta, considerando que inúmeras viagens internacionais fizeram dele um homem cosmopolita: “Vinde a New York, onde há lugar pra todos, / Pátria, se não esquecimento, crença, / Descanso, e o perdoar da dor imensa, / E o renascer-se à luta dos denodos”, conclama a primeira estrofe do “Canto X”.
Tal amplidão geográfica será decisiva para a arquitetura formal do longo poema, em especial por seu reflexo no curioso recurso rimário, quando palavras de idiomas diferentes serão alinhadas pela semelhança fonética: “E forma-se em Castle Garden, / Que vem de todo o mundo, dos que asilo / Já não tinham, a quem os peitos ardem / De espr'ança nova ao céu novo, tranquilo”.
Mas nem sempre novidade rima com qualidade, e o mais conhecido poema de Sousândrade em muitas de suas linhas resume-se a uma quebra da convenção, sem que o barulho entusiasmado da ruptura dê espaço ou habite com o vigor típico das peças épicas modernas em que o delírio do sujeito funde-se ao caos da existência, como exemplifica a passagem: “Jurado de todas Américas , / Qual Colombo sou cidadão. / Bíblio... com Jacó e o café / Dos 'Cânticos'; ...fé;... / Opor à ratoeira a razão;... / E julgar à vivissecção!”. Nesse contexto, o parecer do organizador da antologia merece destaque: “É verdade que se acha no mesmo Sousândrade inovador, ousado, uma série de lugares-comuns, ao lado da insuficiência expressiva e associações aparentemente alógicas, tendendo à obscuridade”.
O ponto alto d'O Guesa é a percepção da selvageria capitalista, no famoso episódio “O inferno em Wall Street”, prenunciador de algumas vanguardas. Nele vemos o sujeito lírico cantando, como viriam a fazer os futuristas alguns anos depois, os avanços da metrópole regida pelas finanças, no mesmo passo em que se choca contra eles: “ Mas no outro dia cedo, a praça, o stock, / sempre acesas crateras do negócio, / o assassínio, o audaz roubo, o divórcio, / ao smart ianque astuto, abre New York”.
Por tais aspectos, a poesia de Sousândrade coloca-se ao lado da dos inovadores de nossa literatura. Ele, primeiro prefeito republicano da cidade de São Luís, homem e poeta do mundo que foi, construiu um arco de fato multicor, ora desenhado com pena de corvo, ora tingido com a fumaça das chaminés ocidentais.(JB Online)
*Mestrando de literatura brasileira da UFRJ.
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