terça-feira, 8 de abril de 2014

Sobre o Cais do Sertão, por Antonio Risério

Em todo o mundo – inclusive, é claro, no Brasil – museus contemporâneos limparam totalmente a poeira que cobria esta palavra de extração grega, mouseîon, que significava originalmente “templo das musas”. Em vez das instituições invariavelmente fechadas e sisudas de algum tempo atrás, passamos a ter entidades vivas, brilhantes, sedutoras e tecnologizadas em bases interativas. Entre nós, o grande marco da mudança – que se converteu, ainda, em marco internacional – foi o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. Um museu intensivamente high-tech, que trazia uma originalidade total: o primeiro museu do mundo a tomar a palavra como objeto. Depois disso, tivemos o Museu do Futebol. E agora, mais ou menos por esse mesmo caminho, mas com suas cores próprias, vai-se configurando o Cais do Sertão Luiz Gonzaga. Entidades que são ou tendem a ser museus de sucesso popular. Museus de massas.

Lógico e natural, na minha opinião. O estranho, ao contrário, era que os museus não conseguissem atrair (ou mesmo tivessem afastado) as pessoas. Claro: em graus extremamente variáveis, somos todos museólogos. Qualquer pessoa que se disponha a organizar suas memórias – sentimentais, profissionais, etc. –, mesmo que na gaveta de um armário ou na prateleira de uma estante, está fazendo um museu. Íntimo e particular, mas um museu. Porque, para simplificar, um museu, em seu sentido mais vago e geral, é uma coleção de espelhos do tempo, dispostos numa determinada ordem, contando, de alguma forma, uma história. E o museu-instituição é um espaço público que narra uma história. Não no sentido da narrativa linear dos livros, letra após letra. Trata-se de uma outra espécie de “narrativa” (se é que tal palavra é adequada aqui), ao mesmo tempo múltipla e fragmentária, ideogrâmica, feita de diversas luzes pulsando em torno de um fio condutor, que é o conceito.

Mas sem tecnolatria. Bem vistas as coisas, um novo museu pode ser high ou low-tech – porque tecnologia alguma é capaz de fazer sozinha um museu. O que tem de estar no cerne e acima de tudo são o conceito e os conteúdos. Se não for assim, o que se vai ter, no máximo, sob a denominação de museu, não passará, na verdade, de um de papel de parede tecnológico, de pura (ou impura) maquiagem, sem qualquer densidade ou intensidade cultural. Com relação ao Museu da Língua Portuguesa, qual foi o conceito? Criar uma espécie de parque de diversões da linguagem, incorporando todas as nossas heranças e atualidades linguísticas, mas de modo que ficasse clara a presença de nossa história e de nossa cultura em cada palavra que aparecesse, de forma sonora ou visual, naquele espaço. A “narrativa” do museu se estruturou em cima disso. Não foi diferente o caminho seguido na concepção do Cais do Sertão Luiz Gonzaga. Porque um museu tem de ter foco, se quer ser um organismo semiótico bem estruturado e não um mero agrupamento de coisas relativamente disparatadas, como tantas vezes acontece. Mas vamos com mais vagar. Antes de tocar no seu conceito, é importante contar um pouco de sua história.

Depois que uma coisa faz sucesso, aparecem muitos pais da ideia e/ou do produto final. No caso do Museu da Língua Portuguesa, isso é espantoso. Os fatos, no entanto, são os seguintes. A ideia original era implantá-lo em Porto Seguro, à passagem dos 500 anos do Brasil. E esta ideia, lançada pelo antropólogo Roberto Pinho, foi publicada no livro Museu Aberto do Descobrimento, em 1994, em tópico intitulado justamente “Museu da Língua Portuguesa”. Foi em cima do vislumbre de Pinho que escrevi o chamado “texto-fundador” do museu hoje paulistano. Mas, com o sucesso da entidade, passaram a se apresentar como seus pais o tucanato paulista, burocratas fundacionais de calibre variado e até um indivíduo que jamais poderia pretender assumir qualquer paternidade, pelo simples fato de não ter intimidade alguma com a língua. Adiantemos, portanto, a brevíssima história do nascimento do Cais do Sertão. Foi uma demanda do então presidente Lula, imediatamente incorporada por Eduardo Campos, governador de Pernambuco. O Ministério da Cultura (MinC) me chamou para formular a concepção geral da casa. E foi assim que acabei escrevendo, também, o texto-fundador do Cais do Sertão. Consultado, sugeri, para a elaboração do projeto arquitetônico, os nomes de Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci, que vinham de trabalhos extraordinários nesse campo, a exemplo do Museu do Pão (Rio Grande do Sul) e do Museu Rodin Bahia, entre outros.

Lula e Eduardo Campos queriam homenagear Luiz Gonzaga. Mas o lance era ir além dessa demanda básica. Ampliar a ideia. Se o Cais do Sertão Luiz Gonzaga não queria ser apenas um museu a mais, mas uma intervenção significativamente criativa no tecido e no movimento real da vida cultural brasileira, deveria começar a ser pensado assim: que Brasil é que nós vamos mostrar e ver aí? Com que Brasil vamos nos conectar, interagindo lúdica e conceitualmente com seus significados mais profundos e suas formas mais expressivas? Foi assim que o museu caminhou para ser uma casa da vida e da cultura nordestinas. Uma casa do “Brasil Sertanejo”, para lembrar a expressão empregada por Darcy Ribeiro em sua tipologia de nossos diversos conjuntos culturais. Casa do sertão gonzaguiano. E é isso o que a museografia, coordenada por Isa Grinspum Ferraz (que também trabalhou na implantação do Museu da Língua Portuguesa), está organizando espacialmente no prédio do Cais, contando com o auxílio luxuoso de Tom Zé, José Miguel Wisnik, Fernando Pernambucano de Mello, do arqueólogo Carlos Etchevarne, de cineastas pernambucanos como Lírio Ferreira e Paulo Caldas, etc.: uma casa onde os visitantes mergulhem fundo no mundo da ecologia catingueira, da seca, do curral, do cordel, dos bailes caboclos, do messianismo, do cangaço, dos rios intermitentes, das feiras e do forró.

Mas isso no campo de uma dialética entre o high-tech e o vernacular. A obra gonzaguiana chamava irresistivelmente nessa direção. Afinal, Gonzaga foi a própria encarnação do diálogo criativo entre a tradição e a invenção, entre o velho e o novo. Ele recriou formas musicais arcaicas num produto inédito. Trouxe a cultura tradicional nordestina para a sociedade e a cultura de massas. Nunca hesitou diante de nenhuma nova situação técnica. Atuou sem inibição nos mass media, gravou discos, lidou com a publicidade e o marketing político (já desde a campanha presidencial de José Américo, em 1937), compôs jingles. Ou seja: ele mesmo representa e significa essa dialética entre a novidade tecnológica e o vernacular, entre a invenção técnica e a criação popular tradicional. Um sujeito inteiramente à vontade tanto num estúdio de gravação, entre mesas de som, quanto no ambiente colorido das feiras nordestinas. Natural que o Cais do Sertão tenha ido por esse caminho. Isso estava claro desde a formulação inicial do projeto, quando dizíamos, parafraseando Walter Benjamin, que Gonzaga foi a refundação da “poemúsica sertaneja” na época de sua reprodutibilidade técnica, num Brasil que começava a se modernizar, tomando o rumo urbano-industrial.

Nenhuma contradição, igualmente, na localização urbana do museu, plantando-se na região do chamado “marco zero” do Recife, divisando a célebre Torre Malakoff, construída em meados do século 19. Dessa localização portuária, aliás, veio o nome Cais do Sertão. E não será demais sublinhar o seguinte. Quem questiona a implantação dessa casa sertaneja não no campo, mas num centro urbano, deveria não se esquecer de uma coisa: Luiz Gonzaga aconteceu na cidade e não no campo. Ele levou o sertão para a cidade. E sua explosão foi urbana. Por isso mesmo é que se converteu no grande referencial, na estrela maior da imigração nordestina para o Sudeste – em especial, para São Paulo, o maior e mais poderoso núcleo urbano sudestino. E é toda essa viagem que vamos ver e rever agora, com a abertura (ainda que parcial) do Cais do Sertão Luiz Gonzaga, em dezembro. Um museu que faz o diálogo do campo e da cidade, um espaço de mesclas entre o rural e o urbano. Uma constelação sertaneja presente, como elemento vital, no cotidiano de uma cidade como Recife. Gonzaga, que conheceu a cidade grande e viu o mar pela primeira vez quando já era adulto, vai ter agora as águas doces e salgadas do Recife a seus pés, embalando os sonhos de futuro do seu fole prateado.

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