Uma história só
por Juliano Gomes
por Juliano Gomes
A imagem mais recorrente do filme de
Arthur Tuoto é o preto que domina tela. Há um incômodo em se dizer “de” aqui. O
filme se compõe de imagens em movimento captadas em épocas diversas e em suportes
variados. Tais trechos são colocados em relação a uma banda sonora retirada da
série de Godard e Miélville,France/tour/detour/deux/enfants (1977),
e são ordenados e desordenados por ela. A falta de imagem entre os trechos é
sempre respeitada, enquanto ouvimos a fala em francês. Mais do que um filme de
montagem, no sentido do choque entre os elementos, o que domina aqui é a
estratégia da composição, de uma tomada de posição em relação ao que se mostra
e como se mostra, marcar e construir perspectivas. As imagens se mantêm sós, os
segmentos são separados uns dos outro pela falta (ou excesso) de imagens,
quando podemos ouvir a narração e a música.
Se há uma dimensão ensaística absolutamente evidente, talvez
seja importante entender o que de fato se mostra no filme: um laboratório
fotográfico onde se revela uma foto; uma pequena invasão da bolsa de valores na
Alemanha; um rosto feminino em alto contraste que remete ao cinema mudo; um
pássaro voando; uma festa; manifestantes em confronto com a polícia e quebrando
bancos em capitais do Brasil; jovens mulheres presas; dois homens que parecem
brigar numa imagem em negativo; um leilão na Sotheby’s; uma montanha russa
vista dum carrinho em movimento sob seus trilhos; casamentos; uma sequência de
câmeras de segurança que parecem indicar uma confusão numa festa; Britney
Spears caminhando sob as luzes dos paparazzi; painéis luminosos de publicidade
de grandes corporações; propagandas de câmeras; imagens que parecem registros
prosaicos de família, entre outros. A única imagem que se repete evidentemente,
no início e fim do filme, é a que parece vir do “cinema”, isto é, da ficção
cinematográfica – o que talvez indique uma saída a partir da ficção e um
retorno a ela.
A recorrência dos trechos sem imagem
remete justamente à relação entre clareza, obscuridade e sentido. Os
antagonistas aqui são a publicidade e o jornalismo – inimigos e amantes
históricos do cinema, junto aos quais o cinema está condenado a estabelecer
relações perigosas, na medida em que se arrisca a ganhar o mundo ou perder-se
totalmente quando tragado pela lógica desses dois irmãos malditos. Os
“monstros”, nome que o filme empresta aos personagens que habitam esses
domínios ligados às grandes corporações e aos aparelhos estatais – às formas de
poder majoritárias, enfim – são personagens ambíguos, na medida em que não
constituem exatamente um outro, um eles. Os
monstros são solitários (como nós, no cinema, e como as imagens do filme, cuja
companhia está sempre distante, em separado), são quem fabrica as câmeras
(vemos Sony, Canon…), não têm imaginação (não criam nada, se apropriam, como
faz o filme). O poder aqui é também dócil, na sua super aparição que tem o nome
de publicidade; ele é também um nós (aquilo que fazemos). O
filme explora justamente os funcionamentos, como imagem, desse ser-monstro,
dessa articulação de escuridão e clareza que lhe é característica e que
normalmente deseja desembocar nesta segunda extremidade.
Assim como um telejornal contemporâneo, em
que a tela é, ao mesmo tempo, espaço para um âncora falando, a cotação das
moedas abaixo, previsão do tempo e outras manchetes, simultaneamente, há
diversos momentos em que a língua se coloca entre nós e a imagem. O que vemos
parece nunca ser (o) bruto. Há sempre algo entre nós e a imagem: logomarcas,
timecodes, datas, horas, ou mesmo texturas e procedimentos de apropriação
diversos (negativo, saturação). O campo de batalha é o campo da mediação, e o
filme aponta que ele sempre está ocupado por alguém. Se as imagens são mantidas
intactas (as variações de tamanho dos quadros dentro do quadro parecem indicar
que o número original de linhas das imagens foi mantido) é porque são em si
altetrações profundas à matéria do mundo. Ao mesmo tempo em que há manutenção,
há também um desejo para que cavemos mais fundo e mergulhemos na formação das
cenas, nas operações de mise en scène que
expressam o que se pode e o que não se pode ver. O filme é essa coleção de
demonstrações – não por acaso, a palavra “monstro” está próxima aqui. Monstro,
afinal, é aquele que não é natural, que não se adapta à medida do mundo.
Cada espaço em preto é a revelação da
inadequação do filme à tela de cinema. Assim como Um dia na Vida(2010),
de Eduardo Coutinho, a exibição do filme de Arthur Tuoto numa tela grande tem
em si uma dimensão performática. Parte de seu efeito dramático é este de estar no lugar errado. Só
se pode saber o título do filme fora dele mesmo, pois não há nomes no início.
A
pergunta “isso é um filme?” ou “o filme já começou?” nunca se afasta totalmente
na experiência de vê-lo, assim como a ameaça de seu fim. A cada trecho sem
imagem é essa possibilidade que se coloca: “essa linha se fecha?”, “onde isso
acaba?”, pensamos. Se ignorarmos a marcante unidade da narração, espinha dorsal
do filme, não estaríamos distante de uma playlist do youtube (diálogo que
Nelson Pereira dos Santos parece ter levado ao limite em A música segundo Tom Jobim (2011) ) ? O mérito negativo do filme,
aquilo que ele não faz, toma vulto diante das discussões correntes sobre o
cinema brasileiro hoje. E, curiosamente, o filme se constrói sendo
absolutamente direto em relação às matérias do que constituiria o
contemporâneo, inclusive para além do conjunto no qual se convencionou chamar
de “Brasil” (apoiar o estado não é só receber dinheiro de edital, mas
naturalizar suas premissas), e a língua francesa é só o exemplo mais evidente
disto. Violência, espaço público, direitos de autor, poder da mídia, papel do
estado, papel da arte, lugares de fala, está tudo aqui elencado.
Se os monstros são então os elementos que exercem essa força de
sujeição, segundo a maneira do estado, ou do capitalismo, seu modelo dentro do
filme é justamente o meio através do qual eles nos chegam: a fala. A locução é
a imagem cujo sentido precisa ser resguardado. Quando falam os narradores, a
legenda, em língua portuguesa, lhes obedece. Se o filme claramente não quer
fazer coincidir o sentido do visual com o da fala (as imagem da fala é a das
letras, ocupando o centro da tela, como traço, grafismo, mesmo que discreto
proporcionalmente), a coincidência da língua consigo mesmo parece algo
inegociável como possibilidade de alteração. O discurso verbal ocupa então um
lugar privilegiado, reverenciado. Ele é a “teoria”, e o filme observa a
possibilidade de vazamento dela nas “massas”, isto é, nas cenas. É esse o
trajeto que vamos acompanhar como drama: “quando uma coisa vai casar com a outra?”,
“quando será que vai coincidir?”. Se o filme traça essa linha bastante ampla de
conteúdos, é notável que não haja imagens de pessoas sozinhas no quadro. O foco
aqui é mesmo a sociedade, o “nós”, a pergunta é justamente “como viver junto?”.
Se os monstros precisam de companhia (“&co”), como todos nós precisamos, as
formas de composição com o outro são então o foco, daí a evidência da política
como eixo central no filme.
A ideia de resolução se duplica na medida
em que o filme estabelece esse conjunto, essa linha que é seu corpo. Mantém-se
as linhas que formam a imagem (resolução como definição), o preto avança à sua
volta, e a força de conservação se dá também na forma desse trajeto. Além do
retorno da imagem do cinema, o filme se estrutura de forma bastante gradual e
harmônica. A aparência esburacada é a explicitação dessa dominância de uma
estrutura que resulta absolutamente linear. A existência das companhias, desse
estar junto, é como matéria dos embates, dos conflitos. São eles que vão
pontuando a curva geral de modulação. Primeiro, o embate de dois homens em
negativo que tomam a tela inteira, do qual só podemos perceber um encontro que
se torna afinal uma briga. No segundo ato, uma festa, que explode na tela, numa
espécie de desejo de catarse (o filme assume de peito aberto essa função de ser
realmente divertido e envolvente. A mediação sofre abalo aqui), que vai ser ao
mesmo tempo uma remissão aos embates coletivos (em determinado momento, as
imagens parecem de uma manifestação, e assim, tornam-se) e uma fuga dessa
superfície de enunciados claramente políticos. O ponto do embate final é a
longa sequência em câmera de segurança que, tendo o recalque da violência como
tema (quase poderia ser um trecho dos melhores filmes de Haneke), coloca o
problema da narrativa como forma. A superfície ensaística, supostamente
errante, é absolutamente secundária na medida em que se estabelecem unidades
temporais e espaciais de onde se pode acompanhar o desenrolar de uma ação
dramática. Nunca vemos o que está acontecendo nessa cena. No cabeçalho do
quadro temos data, hora, e o número da câmera. Vemos deslocamentos de pessoas,
de cima, para dentro e para fora do quadro. Alguém corre, alguém acena com
urgência, muitos passam. Algo aconteceu, é o que se sabe, e a dinâmica entre os
quadros e dentro deles, com esse espaço off específico
que se instala, causa uma sensação absolutamente aderente, eliminando qualquer
distância que o ensaísmo poderia supor.
Quando a locução diz “É hora de uma
história”, é cristalino o seu propósito, e é aí que se produz diferença com
relação a essa matriz. A sombra que domina o filme é também a da imagem godardiana como cânone de um modo de
representação que também se cristalizou, isto é, que pode ser facilmente
transformado em fetiche, isolado em si mesmo. A opção da conservação
generalizada, da não fricção e do não esgarçamento das imagens, da montagem
como posicionamento dos materiais em segurança uns dos outros e da língua como
soberana coloca Aquilo que Fazemos com nossas Desgraças num espaço próprio dentro do domínio
das apropriações. A assinatura final (Arthur Tuoto . 2014) é somente a
indicação mais epidérmica de um desejo de destruição que é limitado, que
precisa conservar, que não deseja o caos e sim uma “nova ordem”. Nem luto, nem
luta, o filme se coloca entre a resignação (a ficção clássica retorna, intacta)
e o reordenamento, a possibilidade de estabelecer uma nova linha, supondo que
há porvir. Desenha-se então um otimismo às avessas, disfarçado de niilismo, no
qual a violência é instrumento mas não fim em si mesma. O preto é afinal uma
forma de luz e não de ausência. Fonte: Revista Cinética - cinema e critica
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